Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Rafael de Souza Barbosa (UFMG)

Minicurrículo

    Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFMG, na linha de pesquisa em Cinema. Bolsista pela Capes. Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade FUMEC e especialização em Gestão Estratégica da Comunicação (2011) e Roteiro para Cinema e Televisão (2015), ambas pela PUC Minas.

Ficha do Trabalho

Título

    Gesto ensaístico e memórias na fricção do passado com o presente

Resumo

    Mais de uma década separam os filmes Santiago (2006) e No intenso agora (2017), de João Moreira Salles. Apesar do distanciamento temporal, ambos compartilham o gesto ensaístico sobre as imagens de arquivo. A proposta deste artigo funda-se no cotejo entre os dois filmes, estabelecendo suas interlocuções, suas aproximações, mas também seus distanciamentos, de modo a examinar como essas imagens interpõem camadas que se abrem para uma política mnemônica que transita entre o íntimo e o social.

Resumo expandido

    Este trabalho se propõe a investigar o documentário de João Moreira Salles enquanto dispositivo ensaístico que coloca a memória em elaboração. Ao indagar o passado no presente, buscamos examinar como as imagens de arquivo em Santiago (2006) e No intenso agora (2017) são capazes de produzir uma política de rememoração que é tanto de cunho íntimo e afetivo quanto coletivo e político.

    É notório o interesse do diretor pelo gesto ensaístico, sobretudo sobre as imagens de arquivo, presente em suas duas obras mais recentes, influenciado por cineastas como Chris Marker, Harun Farocki e seu mentor Eduardo Coutinho (que dizia não tomar as imagens como um documento inquestionável). Mas, ao verter ao ensaio, cabe-nos interrogar como o diretor exercita aquilo que ele cunhou de “investigação da natureza da imagem”? Mais: a partir desse gesto ensaístico, que interpela o passado no presente fílmico, como as imagens de arquivo interpõem camadas temporais nos documentários e se abrem para a construção de memórias?

    Para João Moreira Salles, a função do documentário reside na tensão da fronteira. O grande documentário é aquele que amplia a gramática do cinema e a torna mais rica e complexa. Em Santiago (2006), o diretor propõe uma reflexão sobre o material bruto do documentário que tentou produzir em 1992, mas que na época não foi finalizado. Durante cinco dias, o cineasta filmou uma série de entrevistas com Santiago, antigo mordomo da família, um personagem de vasto repertório erudito e cultura idiossincrática. Ao revisitar 13 anos depois as imagens abandonadas na montagem, o diretor revira os arquivos já sedimentados e imprime no filme uma nova camada temporal – que separa a filmagem de 1992 da edição de 2005/2006 – onde tece o testemunho sobre a memória, o devir e sobre a própria natureza do fazer no documentário.

    No intenso agora (2017) remota à produção de Santiago. Foi nessa época que o diretor percorreu os arquivos de sua família e descobriu dois rolos de filmes 16 mm feitos de modo caseiro por sua mãe, Elisa Margarida Gonçalves, em uma viagem com um grupo de amigos na China, em 1966, durante a fase inicial e manifestadamente mais forte da Revolução Cultural. Às cenas da China somam-se imagens dos eventos de 1968 na França, na Tchecoslováquia e no Brasil, em menor medida. No intenso agora mistura imagens de documentários, televisão, fotografia, áudio e filmes amadores. São dezenas de arquivos postos em análise pelo diretor. Do corte final, apenas uma cena foi captada por João Moreira Salles no metrô de Paris. Na parede curvilínea, característica dos trens urbanos subterrâneos, uma placa retangular azul-marinho com letras garrafais dá nome à estação: Gaité (alegria, em português). No intenso agora tenta compreender como as pessoas que viveram aqueles momentos de apreensão e êxtase intensos lidaram com o cotidiano depois que o “momento sublime se foi”.

    Entendemos que estudar os filmes-ensaio de João Moreira Salles é também um exercício de análise tanto das formas de representação do outro quanto da escrita de si, da expedição a camadas temporais sedimentadas nas imagens de arquivo, da reapropriação do passado, da arquitetura da memória e da maneira como tudo isso é organizado (montado) em narrativas ora refratárias (filmes que interrogam filmes) ora reflexivas (filmes que se desenham na experiência de si).

    Pesquisar esse encontro de temporalidades é um convite à reflexão sobre as imagens em sua forma pragmática, mas também arqueológica. São essas indagações que nos orientam neste projeto. Investigar a opacidade das imagens que se configuram na tensão entre o arquivo, enquanto objeto, e o ensaio, como estratégia reflexiva ou mesmo confessional, é, assim, uma maneira de colocar sob suspeita e problematizar o próprio fazer documental contemporâneo.

Bibliografia

    CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio: desde Montaigne e depois de Marker. Campinas: Papirus, 2015.

    CURSINO, Adriana; LINS, Consuelo. O tempo de olhar: arquivo em documentários de observação e autobiográficos. In: Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v.9, n. 17, p. 87-99, jan./jun. 2010.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015.

    GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

    LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

    RICOEUR, Paul. O testemunho. In: A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Da Unicamp, 2007. p. 170-192.

    SARLO, BEATRIZ. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

    VILELA, Eugénia. Do testemunho. In: Princípios: Revista de Filosofia, v. 19, n. 31, p.141-179, jan/jun, 2012.