Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Carolina Soares Pires (USP)

Minicurrículo

    Carolina Soares Pires é pesquisadora e crítica de cinema, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP e trabalha como diretora e diretora de fotografia.

Ficha do Trabalho

Título

    Capitu: memória, desejo e espectatorialidade

Resumo

    O presente trabalho explora os territórios da memória, do desejo e da espectatorialidade em Capitu (2008), com base em um modelo de análise figural, proposto por Jean-François Lyotard e posteriormente adaptado e expandido para o campo específico da análise fílmica por autores como Philippe Duboi. A análise busca compreender as relações dos espaços sensoriais com os corpos, o movimento e a transparência e como a composição das imagens se faz correlata a uma composição pictórica.

Resumo expandido

    Neste trabalho delineia-se um caminho de análise da minissérie Capitu (2008), dirigida por Luiz Fernando Carvalho, destacando elementos de algumas sequências do primeiro episódio, com base na abordagem figural e também calcada nas figuras da multiplicidade espacial da imagem propostas por Philippe Dubois. A análise detém-se na multiplicidade de sobreposições no campo da imagem e também nas configurações que se dão por meio do uso da transparência. Observa-se, em princípio, dois dos regimes da estética da transparência nesse episódio: o regime decorativo e o regime interativo. Em Capitu, o espaço que as personagens habitam é uma imagem-espaço repleta de transparências e espaços sensoriais, que representam corpos, desejos e memórias, em que domina a matriz fantasmática ancorada no desejo. Sendo o espaço figural o locus onde impera o sensível, busca-se a identificação e compreensão dos elementos que formam a dimensão sensível dessas imagens.
    Caracteriza a obra de Luiz Fernando Carvalho o elaborado amálgama de diferentes artes que o diretor cria em suas produções. Seu modo particular de explorar a imbricação das linguagens do cinema, teatro, ópera, dança, artes plásticas e literatura, culmina em produtos audiovisuais sui generis. Carvalho trabalha nos espaços de fronteira, incorporando elementos das várias artes, criando obras que se movem sempre em zonas de intersecção. O resultado final de seu trabalho, carrega em si essa multiplicidade de referências, de tal modo, que assistir a uma produção sua evoca a experiência de assistir a uma peça ou ver um quadro pintado. Em última instância, o cinema de Luiz Fernando é um cinema da sensação. Em toda a obra de Carvalho, a imagem cinematográfica figura como um prolongamento, uma evolução da imagem pictórica.
    Em Capitu configura-se esse amálgama. A justaposição de elementos de variadas linguagens artísticas culmina em sequências altamente sensoriais e poéticas, intercaladas por sequências em que predomina a função narrativa. O narrador, que equivale ao narrador em primeira-pessoa do romance, Bento (ou Dom Casmurro), materializa-se no campo da imagem e narra sua história para a câmera, num cenário operístico. Esse narrador, ao invocar suas memórias, passa a vê-las materializadas e faz-se espectador da história que ele próprio relata. Ao recusar o clássico recurso do flashback, Carvalho segue um caminho antirrealista, onde a memória não é apenas memória, mas uma memória-presença. Passado e presente convergem, deformando o espaço-tempo realista, constituindo um outro espaço de interação, e, assim, realizando – físicamente – o desejo de Dom Casmurro de “atar as duas pontas da vida” (as mãos do Bento-narrador e do Bentinho criança unem-se, atando os corpos do passado e do presente). A mise-en-scène de Capitu funciona nessa dinâmica de corpos do “presente” e do “passado” habitando o mesmo espaço. As lógicas da memória e da espectatorialidade se fazem presentes em Capitu, exemplo de obra em que a memória tem um sentido não de registro, mas de criação e recriação, sendo o cinema pensado, nesse caso, não como meio de reconstrução de acontecimentos e, sim, como relação com a imagem como meio de construção de memória.
    Em Capitu, o espaço da memória é o espaço do desejo, muitas vezes recalcado. Memória e desejo misturam-se e dão forma à imagem. E, nas imagens regidas pela lógica do desejo (sequências poéticas), a câmera tende a buscar texturas, abstrações imagéticas, a materialidade dos espaços físicos. A composição dessas imagens é quase pictórica, com a mise-en-scène funcionando em uma dinâmica que serve a um duplo propósito: pictórico e sensorial. Em Capitu, memória, desejo e espectatorialidade se sobrepõem e se imbricam, gerando espaços sensoriais. A composição da imagem segue uma lógica pictórica, não só por aproximações com obras e movimentos artísticos, mas pela própria natureza do gesto de criação das imagens pelo diretor, que se configura como um gesto pictórico.

Bibliografia

    BELLOUR, Raimond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997.

    BRENEZ, Nicole. De la figure en générale et du corps en particulier. L’invention figurative au cinéma. Paris: De Boeck Université, 1998.

    CHARNEY, Leo. Num Instante: o cinema e a filosofia da modernidade. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 317-336.

    DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.

    DUBOIS, Philippe. L’écriture figurale dans le cinéma muet des années 20. In: Figure, Figural, sous la direction de François Aubral et Dominique Chateau, 245-273. Paris : L’Harmattan, 1999.

    DUBOIS, Philippe. La tempête et la matière-temps, ou le sublime et le figural dans l’œuvre de Jean Epstein. In: Jean Epstein, cinéaste, poète, philosophe, sous la direction de Jacques Aumont, 267-323. Paris : Cinémathèque Française, 1998.

    LYOTARD, Jean-François. Discours, Figure. Paris: Klincksieck, 1971.