Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Paola Barreto Leblanc (IHAC – UFBA)

Minicurrículo

    Paola Barreto é professora de Artes, Estéticas e Materialidades na Universidade Federal da Bahia. Graduada em Cinema pela UFBA, Mestre em Tecnologias e Estéticas pela UFRJ e Doutora em Poéticas Interdisciplinares pela Escola de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua produção teórica e prática é baseada em circuitos de vídeo analógicos e digitais, arqueologia de mídias e sistemas híbridos, desdobrando-se entre intervenções urbanas, fantasmagorias e ficções científicas.

Ficha do Trabalho

Título

    “Eu rezei uma missa bárbara”: filme e culto na Bahia

Seminário

    Exibição cinematográfica, espectatorialidades e artes da projeção no Brasil

Resumo

    A maioria das terras da região central da capital baiana é de propriedade da Igreja Católica, e chama a atenção o fato de que um dos primeiros locais a oferecer um programa regular de cinema na cidade tenha sido o Cine Recreio São Jerônimo, inaugurado em 1917 em uma sala na biblioteca dos Jesuítas, dentro da antiga Sé. Que imagens, corpos, discursos e práticas a aliança entre Igreja Católica e Cinema trata de invisibilizar em Salvador? Como pensar, hoje, novas encruzilhadas entre filme e culto?

Resumo expandido

    Esse trabalho analisa complexidades do centro religioso, administrativo e comercial de Salvador através da ascensão e queda da atividade de projeção de filmes.
    Na influência no trânsito ao redor das praças, no ritmo de circulação de pedestres, na normatização de hábitos e horários: cinema e catedral, filme e missa, espectador e crente são figuras que se alternam e complementam no “santíssimo da Cinelândia”, para usar a expressão de Vilém Flusser. Salvador não chegou a ter a sua “Cinelândia”, como o Rio de Janeiro ou São Paulo, mas o número de cinemas abertos em torno de sua região central ao longo do século 20 chegou a quase duas dezenas, e o papel das ordens religiosas em sua manutenção e gestão não é pequeno.
    A maioria das terras da região central da capital baiana é de propriedade da Igreja Católica, e chama a atenção o fato de que um dos primeiros locais a oferecer um programa regular de cinema na cidade tenha sido o Cine Recreio São Jerônimo, inaugurado em 1917 em uma sala na biblioteca dos Jesuítas, dentro da antiga Sé.
    A Igreja Católica, desde as primeiras décadas do século XX, expressou oficialmente sua preocupação com o cinema, e em 1936 o Vaticano publica a encíclica Vigilanti Cura, incorporando a “nova mídia” como plataforma para a ação pastoral e evangélica. Nessa mesma década grandes salas são inauguradas no centro de Salvador por ordens religiosas: caso do Cine Excelsior, na Praça da Sé, pela Congregação Mariana, em 1935 e Cine Pax, na Baixa dos Sapateiros, pela Ordem Terceira de São Francisco, em 1936. Durante pelo menos três décadas – entre os anos 1930 e 1960 – os franciscanos desempenharam importante papel no mercado exibidor da cidade, inicialmente exibindo fitas relacionadas a personagens ou festas cristãs, mas aos poucos ampliando e diversificando sua programação, que incluía até mesmo shows de música. A partir dos anos 80, com mudanças na configuração do centro, o fim de linhas de bonde e de ônibus, e a migração do comércio e centros de lazer para outros bairros, a região do centro entra em decadência e os cinemas dos religiosos se mantém, controversamente, exibindo programação de conteúdo pornográfico, para enfim fechar as portas antes da virada do novo século.
    Em 2005, o Cine Pax foi ocupado pelo Movimento dos Sem Teto de Salvador. Cerca de 60 famílias ali se instalaram, mas foram removidas pelos franciscanos interessados em alugar o espaço para um “camelódromo”. O camelódromo nunca foi feito e o prédio ainda encontra-se fechado. O Cine Excelsior também está abandonado e sua porta cimentada para impedir a entrada dos desabrigados que vivem nos arredores da Sé.
    Sabemos que o cinema chega a Salvador como parte de um projeto civilizatório que pretende higienizar e “desafricanizar” (termo comum no jargão jornalístico do início do século) territórios na capital. É digno de nota que a primeira sessão de cinema na cidade ocorra na Rua do Politeama no dia 4 de dezembro de 1897, dia de Santa Bárbara, que na cidade é historicamente sincretizada com o Orixá Iansã, ou Oyá. Segundo a sábia Griô Egbomi Cici, podemos dizer que existe uma ligação entre Oyá e as artes da projeção: “Ela projeta o que não existe, mas fica guardado. Todas as vezes que você projeta, você evoca. Tem realmente a ver com Oyá.” Seguindo essa pista, podemos considerar que os espetáculos de projeções do cinematógrafo Lumière que chegam de Paris a Salvador se associam não apenas ao poder hegemônico da Igreja Católica, dona de prédios e terrenos, mas também ao imaginário das festas religiosas populares e às formas de culto, incorporação e invocação afrodiaspóricas dos terreiros.
    O que o cinema desterritorializa, quando reterritorializa o centro da cidade? Que imagens, corpos, discursos e práticas a aliança entre Igreja Católica e cinema trata de invisibilizar em Salvador? Como pensar hoje novas encruzilhadas entre filme e culto?

Bibliografia

    BOCCANERA JR, Silio. Os cinemas da Bahia, 1897-1918. Salvador: EDUFBA, 2007
    FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. Fazendo fita: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897 – 1930. Salvador: EDUFBA, 2002
    FLUSSER, Vilém. Da cinelândia (= Cinemas) Vilém Flusser Archiv, Berlin – no. de referência– 2340 – Essay – Coisas – 07 – M3-42 112. 1965
    GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989
    GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996
    KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2010
    ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004
    RUFINO, Luiz. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas. Seminário dos Alunos PPGAS-MN/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016
    SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: Processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Ketu. Salvador: Edições Maianga, 2006