Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Reinaldo Cardenuto Filho (UFF)

Minicurrículo

    Reinaldo Cardenuto é Professor Adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e possui doutorado em Meios e Processos Audiovisuais (ECA-USP). Dentre suas últimas publicações, destaca-se o artigo “Mais humor, menos política: uma certa tendência no drama contemporâneo brasileiro” (2016, revista Varia história). Em 2016, dirigiu o documentário “Entre imagens (intervalos)” e organizou o livro “Antonio Benetazzo, permanências do sensível” (Imprensa Oficial).

Ficha do Trabalho

Título

    Brasil sem escuta: reações do documentário à intolerância conservadora

Seminário

    Cinema brasileiro contemporâneo: política, estética, invenção

Resumo

    O objetivo da comunicação é analisar alguns documentários brasileiros contemporâneos, todos em diálogo com heranças do cinema de observação, nos quais percebe-se uma abertura ao saber popular como aprendizado crítico do Brasil. Por meio das ideias que Paulo Freire desenvolve no livro Pedagogia da autonomia, pretende-se defender a hipótese de que tal documentarismo reage, por meio do exercício da escuta, à crescente incapacidade conservadora de lidar com as diferenças culturais e políticas.

Resumo expandido

    No livro Pedagogia da autonomia, Paulo Freire propõe o “encontro” como prática educacional. Com o compromisso de ampliar processos democráticos no interior da sala de aula, evitando uma educação autoritária, o ambiente escolar deve se abrir à participação dos estudantes no desenvolvimento pedagógico. Em oposição ao ensino de cima para baixo, ao docente como voz inquestionável, Freire sugere a ativação dos discentes como espaço de saber. Incorporando a cultura e a sociabilidade dos educandos à sala de aula, como elementos que estabelecem mediações para o aprendizado, o professor consolida um ambiente democrático no qual transmite conhecimento sem deixar de lado as vivências existentes no corpo discente. Tal exercício de ajuste, no entanto, não deve diminuir o papel a ser assumido pelo educador. Ao aproximar-se do universo dos estudantes, tornando-os componente essencial da pedagogia, o docente deve reafirmar seu lugar como instância mobilizadora de reflexões críticas. Em seu livro, Freire convoca inúmeras vezes ao “encontro”: o processo educacional libertador é aquele no qual o discente mobiliza saberes e o professor, sem abdicar de seu papel mediador, organiza e sintetiza tais saberes para uma apreensão crítica do mundo.
    Dadas as devidas distâncias, o pressuposto “freiriano” do encontro parece ser aquilo que também anima uma série de documentários brasileiros realizados nos últimos anos. Estabelecendo diálogos com as heranças formais do cinema de observação, filmes contemporâneos vêm propondo um aprendizado crítico a partir da organização de materiais filmados com indivíduos provenientes das classes populares. Os depoimentos populares, assim como os registros observacionais de suas vidas, materializam-se como saber das vítimas do autoritarismo enraizado na constituição do país. É por meio de tal material, desse saber sobre o mundo, que cineastas de origens sociais diversas, trabalhando em conjunto com suas equipes técnicas, organizam montagens a propor leituras que desvelam diversidades culturais e estruturas de violência encontradas na sociedade brasileira. Embora não sejam professores, tais cineastas tornam-se pedagogos da autonomia, fazendo do exercício formal um lugar de “encontro” possível entre seus conhecimentos estéticos e os conhecimentos testemunhais provenientes da classe popular. Ainda que o dispositivo fílmico prossiga sobretudo nas mãos dos realizadores, o que gera embates políticos no campo das representações culturais e identitárias, tal soma de saberes, no viés do “encontro” freiriano, estimula no tempo presente um aprendizado acerca do país. Diversos documentários brasileiros recentes, na linha observacional, têm mobilizado fabulações e depoimentos que convidam à escuta sobre o universo popular. Em uma contemporaneidade na qual vivemos o naufrágio democrático, o “negacionismo” das opressões históricas e a incapacidade crônica de lidar com as diferenças, tal documentarismo abre-se como organização estético-pedagógica para uma escuta cultural e política das vítimas.
    Assim, no filme Modo de produção (2017), de Dea Ferraz, a câmera observacional reúne testemunhos de trabalhadores rurais acerca das inúmeras violências sofridas no campo. Já em Homem-peixe (2017), de Clarisse Alvarenga, o deslocamento de um camponês, que viaja para conhecer o mar, torna-se convite para conhecer aspectos culturais do Brasil profundo. Também é por esse caminho o aprendizado presente no documentário A rainha Nzinga chegou (2018), de Júnia Torres, no qual o exercício de escuta volta-se para uma liderança religiosa afro-brasileira em busca de suas origens identitárias na África. No caso de Parque oeste (2019), de Fabiana Assis, observar o popular em sua luta por moradia é adquirir um saber sobre o sistema de opressão que unifica interesses mesquinhos dos poderes públicos e privados. Reside em tal documentarismo, pelo viés do “encontro” freiriano e das heranças observacionais, uma escuta emergencial para o Brasil contemporâneo.

Bibliografia

    CARDENUTO, Reinaldo. O cinema político de Leon Hirszman (1976-1981): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro. Tese (Doutorado em Ciências) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.

    CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

    MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.