Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Letícia Xavier de Lemos Capanema (UFMT)

Minicurrículo

    Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e professora dos cursos de graduação em Cinema e Audiovisual e em Radialismo da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

Ficha do Trabalho

Título

    Enlace onírico: limiares sonoros no filme musical

Seminário

    Estilo e som no audiovisual

Resumo

    Propomos refletir sobre as articulações do som em filmes musicais. Em especial, ressaltamos mecanismos sonoros que operam nas passagens entre a realidade diegética e o nível onírico/subjetivo dos números musicais. Para isso, serão analisadas cenas de “Cantando na Chuva” (G. Kelly e S. Donen, 1951) e “Dançando no Escuro” (L. Von Trier, 2000). Dessa maneira, buscamos observar os limiares sonoros que integram distintos estados narrativos (diegese e metadiegese) e ontológicos (realidade e sonho).

Resumo expandido

    Propomos investigar a tessitura sonora de filmes musicais. A partir das passagens entre a encenação convencional e o número musical, buscamos observar os limiares sonoros, destacando o entrelaçamento entre a realidade diegética e o nível onírico/subjetivo. Para isso, preliminarmente, são levantadas questões referentes às origens da música no cinema, às analogias entre filme e sonho e à propriedade rítmica presente na música e na imagem em movimento.
    Sabe-se que a música acompanha a projeção fílmica desde os primórdios do cinema. Essa relação inicial foi investigada por diversos historiadores (GORBMAN, 1987; CHION, 1992; ALTMAN, 1992). As explicações para esse fenômeno abrangem desde a necessidade de abafar o incomodo ruído do projetor à criação de uma ambientação onírica, propiciadora da abertura dos sentidos.
    As analogias entre filme e sonho são igualmente antigas e foram retomadas de maneira profícua a partir do anos 1970. Jean Louis Baudry (1978), por exemplo, empreende aproximações entre a projeção de filmes, a alegoria da caverna de Platão e a “Interpretação dos Sonhos” de Freud. Já Christian Metz (1975), em suas comparações entre filme e sonho, postula que o cinema estaria mais próximo do devaneio, do sonhar acordado.
    Ademais, pode-se constatar que música e imagem em movimento compartilham propriedades fundamentais, visto que são formas expressivas que se dão no tempo, sendo, portanto, criadoras de ritmo. No entanto, as relações históricas, oníricas e ontológicas entre música e cinema ganham outros contornos com a emergência do filme musical como gênero cinematográfico.
    Se considerarmos, por um lado, o poder de encantamento da música e, por outro, o dispositivo cinematográfico como máquina de sonhos, o filme musical seria, potencialmente, uma expressão bem acabada da função onírica do cinema. Tal potência delirante faz com que o filme musical assuma altos riscos no processo de “suspensão da descrença”. Contudo, a inverossimilhança dos números musicais não provoca a ruptura do pacto da ficção. Pelo contrário, é no filme musical que o cinema assume, de maneira mais nítida, aquilo que é: um discurso onírico, encantadoramente artificial.
    Gilles Deleuze, em “Imagem-tempo” (2013), havia observado a potência onírica dos musicais. Segundo o autor, na comédia musical, “o ato cinematográfico consiste em que o próprio dançarino entre em dança como se entra no sonho”(2013, p.79). Para Deleuze, o limiar sonoro/cinético nos filmes musicais é o momento “em que o dançarino ainda está andando, mas já é o sonâmbulo que será possuído pelo movimento que parece chamá-lo” (2013, p. 78).
    Michel Chion (1992, p.111) também atribui à música a capacidade onírica de envolver e transportar para outra dimensão. Como um assobio no escuro (siffler dans le noir), a música conduz à atmosfera dos sonhos. Nos números musicais, acende-se do nível narrativo rumo ao sonho implicado e depois retorna-se à diegese, sem que esses deslocamentos quebrem o pacto da ficção. No musical, o ritmo brota de dentro da cena. Do estado de vigília ao enlace onírico, a música nasce da banalidade sonora de objetos, corpos e espaços. O encontro da cena com a música ocorre por meio de gestos, ruídos e silêncios que entram em consonância para gerar cadência, retomando a natureza rítmica que une ontologicamente cinema e música.
    Para refletir sobre o tema, serão analisadas cenas de “Cantando na Chuva” (1951) e “Dançando no Escuro” (2000). Embora sejam filmes de contextos e propósitos distintos, ambos apresentam ricas articulações sonoras nos trânsitos entre cenas convencionais e números musicais. É nas passagens que a música se (de)compõe, reduzindo-se ao seu elemento primeiro e inorgânico, o som. Assim, interessa-nos examinar as nuances da integração musical a outros sons (falas, ruídos) e imagens (ações, enquadramento, montagem), buscando refletir sobre o limiar sonoro como terreno de tensões em que convivem distintos níveis ontológicos e diegéticos.

Bibliografia

    ALTMAN, Rick. Sound theory, sound practice. Nova York: Routledge, 1992.
    BERCHMANS, Tony. A música do filme. São Paulo: escrituras, 2006.
    BAUDRY, Jean-Louis. L’effet cinema. Paris: Albatross, 1978.
    CHION, Michel. La musique au cinema. Paris: Fayard, 1992.
    CHION, Michel. A audiovisão. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
    CARREIRO, Rodrigo; BELTRAO, Felipe Barros. Ruídos na canção: o caso de dançando no escuro. In: Revista Contemporânea (UFBA)- v.12, n.02 – maio-ago 2014.
    CARREIRO, Rodrigo (org). O som do filme: uma introdução. Recife: Editora UFPE, 2018.
    DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: editora Brasilienese, 2013.
    GORBMAN, Claudia. Unheard melodies: narrative film music. Bloomington: Indiana University Press: British Film Istitute, 1987.
    MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. São Paulo: Editora Papirus, 2012.
    MATOS, Eugênio. A Arte de compor música para o cinema. Brasília: Senac, 2014.
    METZ, Christian. Le film de fiction et son spectateur. Communications, n.25, 1975.