Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Joice Scavone Costa (UFF)

Minicurrículo

    Doutoranda em em Estudos do Som no Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), atualmente leciona nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e Academia Internacional de Cinema (AIC) do Rio de Janeiro.

Ficha do Trabalho

Título

    As “condições de estranheza” da voz em Doce Amianto (2013)

Seminário

    Estilo e som no audiovisual

Resumo

    Diante da estranheza no encadeamento entre os elementos do filme Doce Amianto (2013), a voz está sempre próxima ao espectador. O uso das fonações por Guto Parente e Uirá dos Reis é carregada de valor estético e emotivo arranjados pelo timbre, ritmo, entonação e espacialização da voz dos personagens do filme. Pretendemos explicitar as tenções que evidenciam a construção esquizofrênica de vozes que não condizem com os espaços dos demais elementos sonoros ou da tela, nem com os corpos em cena.

Resumo expandido

    A presente proposta atenta para a concepção sonora do filme cearense Doce Amianto (Guto Parente & Uirá dos Reis, 2013). Em particular, tentamos compreender as relações, tensões e liberdade entre a imagem e o som da obra. O corpus supracitado afeta o espectador para além das relações entre objetos, imagens e suas interpretações. Assim como nas proposições do antropólogo Tim Ingold (2011), o filme é constituído por diferentes camadas de experiência e não como produto mental ou espiritual a partir da construção com a luz e com o som, em concomitância.
    Ao longo das transformações na experiência-cinema, Deleuze (1990, p. 293) observa que o “vaivém entre a palavra [desde as palavras escritas] e a imagem” (VIDAL apud DELEUZE, 1990) fez aflorar uma nova relação entre elas. O que podemos compreender dos desdobramentos dessas possibilidades em obras audiovisuais no cinema contemporâneo brasileiro? Em nossa visão, o filme Doce Amianto contém “condições de estranheza” da fala que tencionam a relação visual e sonora de forma esquizofrênica durante toda a duração do filme: as vozes nunca condizem com os espaços dos demais elementos sonoros ou da tela, nem com os corpos em cena; a disjunção é reinventada a cada plano e o sonoro povoa sem necessariamente preencher o visto e o não-visto visual com uma presença específica.
    A disjunção é em si um ato de resistência, pois a voz vem do outro lado da imagem e está sempre próxima ao espectador, independente da profundidade de campo da imagem. O uso das fonações por Parente e dos Reis é carregada de valor estético, emotivo e político: arranjados pelo timbre, pelo ritmo, pela entonação e pela espacialização da voz dos personagens do filme, desde a captação até a projeção e apreensão destes pelo espectador.
    A voz, de acordo com as convenções da linguagem cinematográfica, deve permanecer na caixa central (atrás da tela) e manter a sincronia com a boca do personagem em quadro. O som da boca de Amianto, entretanto, se desloca da tela. Com base na sociolinguística, o filósofo Gilles Deleuze distingue as “falas” entre atos de fala interativos (som in e som off relativo ou “fora de campo”) e atos de fala reflexivos (som off absoluto ou “extradiegético”). Doce Amianto, se distancia destas definições antagônicas ao corroborar e homenagear um cinema cujos atos de fala são mais misteriosos, são atos de fabulação. A relação do som com as camadas visuais se daria em movimento, de forma que a voz de Amianto forma uma unidade que existe à parte de seu corpo, concomitante no filme, eles se relacionam, mesmo sem estarem diretamente conectados. A fala de Amianto não pertence àquele espaço, não sabemos se saiu da boca dela.
    Sua voz atravessa lugares, espaços e pessoas, não segue ou parte do corpo da personagem, mas circula e se propaga de onde não se sabe: de alhures. São vários os espaços paralelos e concorrentes. Os ouvidos do espectador apenas observam/auscultam estas diferenças nos mecanismos de gravação e reprodução do som explícitos no próprio tecido fílmico. A experiência não é interrompida por essa multiplicidade, mas a mixagem corrobora para que fiquemos sempre em alerta, pois não existe o conforto do som naturalista que escamoteia e direciona nossas diferentes experiências sensórias. Aqui, o som contém diferentes camadas, diferentes tons.
    A fala de Amianto contém ritmo, um movimento que encadeia a falta de sequência nas ideias, com, em contrapartida, estranhas associações, curiosas recordações, que em nada se parecem com os diálogos que habitualmente preenchem as narrativas cinematográficas. Trata-se de uma conversa sonora, com desenhos da música dos arranjos sonoros que se formam na escuta independentemente dos seus conteúdos, objetos ou corpos na tela. Em tom de narrativa literária, a construção das falas de Amianto não circula e não se propaga de forma a criar interações vivas entre personagens independentes e lugares separados, porque ultrapassa personagens determinadas e permanece sem lugar.

Bibliografia

    AUDIBERT, L. “L’ombre du son”, Cinématographe, n० 48, jul, 1979, p-p 5-6.
    BERTHET, F. “La conversation”, Communications, no 30, 1979, p. 150
    CAESAR, R. “O berro da arara: para ‘re(con)duzir’ o objet sonore”. Apresentado no XXVII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Campinas – 2017
    CHION, Michel. La voix au cinema, Cahiers du cinéma – Editions de l’Etoile, pp. 13-14.
    _____________. L’audio-vision – Son et image au cinema. Paris: Armand Colin, 1990
    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. (Coleção TRANS).
    ___________. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
    GUIMARÃES, C. A INTRODUÇÃO DO SOM DIRETO NO CINEMA DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 1960. São Paulo: Dissertação defendida na Universidade de São Paulo(USP), 2008.
    INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Editora Vozes, 2011