Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Raquel Valadares de Campos (UFJF)

Minicurrículo

    Raquel Valadares graduou-se em Cinema pela UFF. Atualmente é orientanda do Prof. Felipe Muanis e bolsista no mestrado em Cinema e Audiovisual PPG em Artes, Cultura e Linguagens, do Instituto de Artes e Design, da UFJF. Na graduacão trabalhou o tema da espectatorialidade do cinema popular indiano. Agora no mestrado, pesquisa a performatividade do cinema testemunhal de Lúcia Murat.

Ficha do Trabalho

Título

    O Jogo de Máscaras em Que Bom Te Ver Viva (1989)

Resumo

    Após trabalhar conceitualmente as implicações do testemunho superstes nos documentários dirigidos por cineastas vítimas de catástrofes e sua consequente performatividade, nesta SOCINE analisaremos mais precisamente o segmento ficcional do documentário Que Bom Te Ver Viva (1989) de Lúcia Murat. Veremos como sua personagem alter ego, interpretada por Irene Ravache, e a estrutura dialogal do filme são instrumentais para que Murat performe o seu testemunho.

Resumo expandido

    Considerando que documentário, assim como autobiografia, é um modo de leitura (DE MAN, 1986; ODIN, 2012; SOBCHACK, 1999) – que ocorre quando o espectador enxerga, através das personagens e histórias da ficção, seus ecos existenciais e referentes reais – pode-se identificar na personagem fictícia interpretada por Irene Ravache, no segmento ficcional do documentário Que Bom Te Ver Viva (1989), a pessoa e a história de vida de Lúcia Murat – cineasta brasileira vítima de tortura na Ditadura Civil-Militar Brasileira. Identificar em uma personagem fictícia o eu da cineasta – uma persona que necessariamente carrega marcas do si mesmo da artista (COHEN, 2013) – fomenta o debate sobre autorrepresentação (RASCAROLI, 2012), autoinscrição (RENOV, 2008), encenação de si (WAUGH, 2011) e performatividade (BUTLER, 2015) da cineasta.
    Reconhecendo que o documentário experimentou uma guinada subjetiva e crise epistemológica próprias quando trouxe o cineasta para o centro da narrativa fílmica, nos chamados documentários performativos e autobiográficos, situaremos o debate sobre testemunho, sobre os limites entre ficção e documentário e sobre a capacidade de produção de conhecimento verificável em Que Bom Te Ver Viva (1989). Focando na construção da personagem alter ego de Lúcia Murat, analisaremos a inscrição da subjetividade e a incorporação do autor na narrativa dessa obra à luz das teorias da performance (COHEN, 2013) e do documentário performativo (SILVA, 2014).
    A análise conjugará elementos imanentes da obra e paratextos a fim de justificar a ocorrência de momentos autobiográficos em Que Bom Te Ver Viva e de compreender como Murat constrói no filme um self retratável de si mesma, uma persona, com a intenção de positivar o acontecimento relato, de produzir conhecimento incorporado e de transmitir, por meio de seu testemunho, a sua experiência pessoal de vítima e sobrevivente da Ditadura Civil-Militar brasileira. A chave para compreender como Murat performa sua identidade é a própria estrutura dialogal do testemunhho, mesmo que mascarado pela personagem fictícia e incorporado pela atriz Irene Ravache. Dois são os eixos que marcam a estrutura dialogal do filme: a mise-en-scène do segmento ficcional e a narração em off do segmento factual.
    Desde a terceira cena de seu segmento ficcional, o filme Que Bom Te Ver Viva planta uma percepção que vigora durante todo o filme: que a personagem interpretada por Irene Ravache fala para o espectador mesmo quando fala para si, em uma constante e consistente extrojeção de si mesma. Essa relacionalidade construída com o espectador, por meio do olhar lançado à câmera e por de interpelação direta, complexifica-se ainda mais nos momentos em que se usa o pronome “você” na fala. Especialmente quando o “você” dirigido ao espectador singulariza um destinatário da fala específico, o que ocorre muitas vezes e com destinatários distintos ao longo do filme, impelindo o espectador a assumir múltiplas identidades, como, por exemplo, o seu torturador.
    Outro elemento da estrutura dialogal do testemunho é a narração em primeira pessoa. Que Bom Te Ver Viva, diferentemente de documentários em primeira pessoa, não é narrado por sua diretora. No segmento factual do filme, a voz da diretora Lúcia Murat é substituída pela voz da atriz Irene Ravache, o que não impede a expressão de reflexividade e a inscrição fílmica da diretora. Contudo, apesar de ser sabido que é Lúcia quem faz as entrevistas, com essa substituição das vozes, o filme leva a crer que é Irene Ravache a diretora e, portanto, entrevistadora, sujeito por detrás das câmeras e enunciadora real do filme, reforçando a concomitância entre o factual e o ficcional e a ambivalência entre cineasta e personagem alter ego.
    Espera-se, com esta análise, discutir como a performatividade da identidade de Lúcia Murat, enquanto vítima e sobrevivente da repressão, e o seu testemunho agem sobre o espectador, cuja função é receber e acreditar o relato.

Bibliografia

    BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015
    COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2013
    DE MAN, Paul. The Rhetoric of Romanticism. New York: Columbia University Press, 1986
    ODIN Roger. Filme documentário, leitura documentarizante. São Paulo: Significação, ano 39, nº 37, 2012
    RASCAROLI, Laura. The Self-portrait Film. In: LEBOW, Alisa. The Cinema Of Me. London & New York: Columbia University Press, 2012
    RENOV, Michael. First-person Films: Some theses on self-inscription. In: AUSTIN, Thomas e DE JONG, Wilma. Rethinking Documentary. Maidenhead: Open University Press, 2008
    SILVA, Patrícia R. Documentários performáticos. Dissertação. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004
    SOBCHACK, Vivan. Toward a Phenomenology of Nonfictional Film Experience. In: GAINES, Jane M e RENOV, Michael. Collecting visible evidence. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999
    WAUGH, Thomas. The Right to Play Oneself. Minnesota: University of Minnesota Press, 2011