Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    PEDRO PEREIRA DRUMOND (UFF)

Minicurrículo

    Doutorando em Comunicação na linha de Estéticas e Tecnologias da Comunicação (PPGCOM-UFF), Mestre em Comunicação na linha de Estudos do Cinema e do Audiovisual (PPGCOM-UFF) e Bacharel em Cinema e Audiovisual (UFF).

Ficha do Trabalho

Título

    Sonhar não é reviver algo que é seu: traumatipo documentário

Seminário

    Cinema brasileiro contemporâneo: política, estética, invenção

Resumo

    Em Era o Hotel Cambridge (Eliane Caffé), Ngandu sonha. Seu sonho aparece como um documentário de cinema, mas não como uma sequência onírica realizada sob a aparência de um registro documentário, mas a reaparição de imagens que tiveram sua gênese em um outro filme, Blood in the mobile (Frank Poulsen). E se Eliane Caffé realiza a encenação cinematográfica de uma importante lição freudiana, de que sonhar não é reviver algo que é seu? Como podemos pensar, a partir disso, a própria conduta do filme?

Resumo expandido

    Em Era o Hotel Cambridge (Eliane Caffé, SP, 2016), Ngandu sonha. Seu sonho aparece como um documentário de cinema. As imagens que vemos no íntimo do seu sono revelam seu passado, lembranças de outro tempo e lugar. Nessas memórias, ouvimos o depoimento de um homem envolvido na mineração de cassiterita no Congo, exploração diretamente ligada à uma violenta guerra civil no país. As imagens que surgem diante de nós são tomadas típicas da urgência do registro documentário: depoimentos endereçados à um realizador participante, imagens trêmulas e intuitivas de uma câmera na mão. Se sequências de sonho no cinema sempre foram um espaço liberdade para as ficções mais oníricas, há aqui uma reversão que nos lembra que todos os códigos atrelados à uma autenticidade realista é “Algo como o realismo sonhado” (COMOLLI, 2006).

    Ngandu é um personagem de ficção, interpretado por Guylan Mukendi; nem ator nem não-ator: recém-ator. Ngandu e Guylan não compartilham o mesmo nome mas dividem uma história. Nascidos no Congo, refugiaram-se no Brasil em busca de melhores condições de vida. Antes de sonhar, Ngandu vê fotografias da época de quando vivia em continente africano. As imagens são originárias de um mundo alheio ao universo ficcional, são reaparições de objetos pessoais de Guylan que foram arrancados ao filme para pertencerem ao passado misterioso de Ngandu. Nesse cinema que faz recém-atores interpretarem personagens virtualmente idênticos a si mesmos, toda a lacuna biográfica e subjetiva dos personagens ficcionais é preenchida por um vazamento do ator ao personagem, não sabemos com o quanto de Guylan nasce Ngandu.

    Não será surpresa descobrirmos que o sonho de Ngandu não é apenas uma sequência realizada sob a gramática de um registro documentário, mas a reaparição de imagens de um outro filme. Eliane Caffé se apropriou de trechos do documentário Blood in the mobile (Frank Piasecki Poulsen, 2010), que denuncia a cumplicidade entre a indústria de eletrônicos e a guerra civil congolesa. Caffé fez essas imagens emergirem em seu filme como matéria de sonho e de memória, imagens que não foram trocadas ou transferidas, mas arrancadas à uma duplicação sem circularidade. O que se entende por “documentário” na sequência, é o que resta de um “modo de apresentação”, um semblante. Essa “origem documentária” esquecida nas imagens são o próprio “umbigo do sonho” de Ngandu: “O esquecimento é, por assim dizer, aquilo a partir do qual e em direção ao qual se desenha o umbigo do sonho – do mesmo modo que é o ponto de fuga da interpretação” (FREUD apud DIDI-HUBERMAN, 2010). Essas imagens oriundas de um filme alheio simultâneamente cavam e preenchem a lacuna da biografia de Ngandu. O documentário encontra sua forma de fuga, sua aparição imprópria enquanto sonho-documentário. Não é só Ngandu que se transindividua durante o sonho, mas o próprio documentário quando sonho, que extrai do estereótipo de uma gramática documentária uma espécie de fundo traumático reprimido: um traumatipo do estereótipo documentário. São esses os termos postos por Bernard Stiegler em sua excêntrica teoria do cinema que coincide com uma organologia dos sonhos: “Durante um sonho eu transindividuo a mim mesmo de uma maneira que vai contra a transindividuação dominante – o sonho põe em movimento traumatipos que estão escondidos sob estereótipos – o que é exatamente o que acontece em qualquer bom filme” (STIEGLER, 2018)

    E se Eliane Caffé realiza a encenação cinematográfica da importante lição freudiana de que sonhar não é reviver algo que é seu? O sonho não pertence à Ngandu, as imagens do sonho não pertecem ao filme realizado por Caffé. São as formas sensíveis de uma posse sem propriedade, que existem em um filme feito em um edifício abandonado reivindicado à ocupação por uma frente de luta por moradia e às voltas com os problemas de arrancar o vivido ao filmado, dos riscos da ficção espetacular e da banalidade documentária. Traumatipos sob os estereótipos, diante de um “inapropriável”.

Bibliografia

    CAFFÉ, Carla. Era o hotel Cambridge. Arquitetura, cinema e educação. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2016.

    COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

    FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Editora Imago,1969.

    GUIMARÃES, Cesar, CAIXETA, Ruben. Pela distinção entre ficção e documentário, provisoriamente. In COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida. Cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 32-49.

    RANCIÈRE, Jacques. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.

    SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

    STIEGLER, Bernard. The Neganthropocene. Londres: Open Humanity Press, 2018.