Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Fabiano Pereira de Souza (UAM)

Minicurrículo

    Doutorando e Mestre em Comunicação Audiovisual, na linha de pesquisa Análises de Produtos Audiovisuais, e especialista em Cinema, Vídeo e Fotografia – Criação em Multimeios pela Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo (SP). Pesquisa inovações de montagem pela perspectiva histórica e estética. Integrante do grupo de pesquisa, inscrito no CNPq, Cinema expandido, da estereoscopia ao web footage: novos regimes de visualidade no século XXI. Jornalista com experiência em mídia impressa e online.

Ficha do Trabalho

Título

    O outro lado do vento: Orson Welles e a montagem da Nova Hollywood

Resumo

    Após décadas arquivado incompleto, O outro lado do vento, de Orson Welles, é exemplo não apenas de preservação e recuperação de material filmado, como de resgate póstumo da visão de um artista para concluir uma obra. Como outros filmes americanos dos anos 1970 com período de edição acima da média, traz inovações de montagem comparáveis à teoria eisensteiniana e os novos cinemas dos anos 1960 e antecipa tendências como edição de videoclipe e estética documental de câmera na mão.

Resumo expandido

    O outro lado do vento (The other side of the wind, EUA/França/Irã, 2018), dirigido por Orson Welles (1915-1985), passou décadas inacabado, a exemplo de outras obras dele, como o documentário É tudo verdade (It’s all true, EUA, 1943), que o cineasta rodou no Brasil. Depois de outras tentativas, o material filmado entre 1970 e 1976 foi adquirido pelo canal de streaming Netflix para ser concluído.
    O enredo mostra o último dia de vida do cineasta Jake Hannaford (John Huston), de volta a Hollywood após anos na Europa. A trama embute cenas do filme que ele tenta terminar sem fundos, também chamado O outro lado do vento. A situação do protagonista equivale à de Welles, o que reforça o caráter metalinguístico da obra, colcha de retalhos no filme de Welles e no de Hannaford, devedores pelo menos das montagens rítmica e tonal de Sergei Eisenstein (EISENSTEIN, 2002, p. 80-84).
    Surgia em Hollywood uma nova geração de diretores influenciados pelo cinema moderno europeu, mas tanto a cinematografia quanto a edição retomam soluções de Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941), que romperam com a tradição narrativa. Lá estão a mistura de estilos diferentes (ficção e documentário), duas ações registradas no mesmo plano pela profundidade de campo (MOURÃO, 2002, p. 36), mas não o plano-sequência para registro da ação na integridade de seu tempo.
    Welles já havia editado cerca de 45 minutos, referência de como montar o que faltava. Bob Murawski assumiu a conclusão. Um total de quase três horas de montagem preliminar precisou ser referenciado de volta a cem horas de negativos num sistema virtual de inteligência artificial.

    Era tudo parte do conceito criativo de Welles: filmar em tantos formatos quanto possível e editá-los juntos como uma colagem cinematográfica de imagens em movimento e estáticas filmadas tanto em cores e preto e branco, com 16mm, 35mm, Super 8, câmeras portáteis e fixas. Como parte disso, muitos extras receberam câmeras com o pedido de filmar durante as cenas da festa. (KARP, 2015, p. 49)

    A forma como O outro lado do vento se estrutura impressiona pela complexidade visual, a agilidade proporcionada pelo grande número de cortes e a agitação das câmeras em enquadramentos instáveis (não raro muito fechados) ou dos movimentos ríspidos em enquadramentos inusitados da cinematografia de Gary Graver (1938-2006), que ainda explora a profundidade de campo em jogos de foco.
    O filme de Hannaford também prima por cortes ligeiros, mas com ângulos atípicos, elementos visuais entre câmera e objeto principal e várias superfícies reflexivas que simulam sobreposições. A ambiguidade narrativa de obra aberta (XAVIER, 2008, p. 95) lembra Zabriskie Point (EUA, 1970), de Michelangelo Antonioni. Cenas de montagem complexa e não claramente linear absorvem o cinema de vanguarda americano dos anos 1960, o que a MTV popularizaria a partir dos anos 1980 (SCHRÖDER, 2001, p. 33).
    Welles anteviu o hoje recorrente uso de câmeras portáteis e flexíveis para elevar a energia visual e simular a autenticidade crua de documentário (BORDWELL; THOMPSON, 2010, p. 675). A opção transcende a estética. Sem prestígio nos grandes estúdios nem acesso a equipamentos como gruas e dollies e profissionais experientes, ele não conseguia a estrutura para realizar o tipo de plano-sequência intricado que o tornou famoso.
    Outras pós-produções americanas demoradas dos anos 1970 geraram montagens inovadoras, o que confere a O outro lado do vento valor simbólico da época. Apocalypse now (EUA, 1979), de Francis Ford Coppola, e Eraserhead (EUA, 1977), de David Lynch, se destacaram na edição de ambientes sonoros que traduzem estados emocionais (MENDES, 2006, p. 196) ou criam atmosfera sonora ininterrupta (CHION, 1995, p. 38).
    Welles concebeu um filme caleidoscópico, seja na sua cinematografia, sua montagem, sua produção, os fragmentos ficcionais e documentais, bem como nos tempos de sua história até ser lançado para ser vistos nos mais diversos formatos de tela de TV, computador e celular.

Bibliografia

    BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film history: an introduction. Nova York: McGraw Hill, 2010.

    CHION, Michel. David Lynch. Londres: British Film Institute, 1995.

    EISENSTEIN, S. M.. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

    KARP, Josh. Orson Welles’s last movie: the making of The other side of the Wind. Nova York: St. Martin’s Press, 2015.

    MENDES, Eduardo Simões dos Santos. Walter Murch: A revolução no pensamento sonoro cinematográfico. Tese de doutorado para a ECA-USP, 2000.

    MOURÃO, Maria Dora. O tempo no cinema e as novas tecnologias. In.: Ciência e Cultura. vol.54, no.2, p. 36-37, São Paulo Oct./Dec. 2002

    SCHRÖDER, Rob. Entrevista. In.: BALKEMA, Annette W.; SLAGER, HENK. (edit.) Exploding Aesthetics. Amsterdã: Editions Rodopi B.V., 2001, p. 33-39.

    XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo. Paz e Terra, 2008.