Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Fabio Camarneiro (UFES)

Minicurrículo

    Fabio Camarneiro é professor adjunto no curso de Cinema e Audiovisual e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional – PPGPSI, ambos na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. É doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP e mestre em Comunicação Impressa e Audiovisual pela mesma instituição. Atualmente, pesquisa as relações entre Arte, Subjetividade e Tecnologia.

Ficha do Trabalho

Título

    A chegada: tempo e linguagem no cinema de ficção científica

Resumo

    A chegada (Denis Villeneuve, 2016) retrata como a comunicação imposta pelas novas tecnologias têm impactado não apenas as instituições democráticas ao redor do mundo, mas a própria percepção da história. A grande tela retangular transparente, que no filme serve de suporte para a comunicação entre humanos e alienígenas, é metáfora das telas de computador e celular que tem pautado as cisões discursivas contemporâneas: espaços de comunicação instantânea e icônica, a marcar um novo tribalismo.

Resumo expandido

    A ascensão de governos próximos à extrema-direita em diferentes países ocidentais chamou a atenção para uma nova forma de marketing político, em que o debate aberto de ideias é substituído pela segmentação de mensagens – muitas vezes falsas – através de aplicativos de comunicação instantânea (principalmente o WhatsApp). A ausência de um território comum para o diálogo (e o dissenso sobre fatos aparentemente óbvios, como o formato do planeta Terra) levou alguns analistas a apontar um risco para as fundações democráticas.
    À primeira vista, tal cenário talvez tenha pouco a ver com um filme de ficção científica lançado em 2016, realizado por um diretor canadense a partir de um conto escrito em 1998 por um autor estadunidense de ascendência chinesa. Mas A chegada (Denis Villeneuve, 2016) retrata, de maneira metafórica, os problemas de comunicação impostos pelas novas tecnologias – problemas que, direta ou indiretamente, têm impactado não apenas as instituições políticas ao redor do mundo, mas também a própria percepção da história.
    No enredo – baseado no conto “História da sua vida”, de Ted Chiang –, uma linguista é convocada pelo exército estadunidense para decifrar a linguagem de alienígenas (chamados de heptápodes) que fizeram contato. O aprendizado da fala e da escrita do idioma alienígena acaba por promover alterações na percepção temporal da personagem, como se ela pudesse vislumbrar, de uma vez, passado, presente e futuro. No conto que dá origem ao filme, a personagem explica que a linguagem alienígena pressuporia “uma interpretação teleológica dos acontecimentos: vendo os eventos ao longo de um período de tempo, reconhecia-se que havia uma exigência que devia ser satisfeita, um objetivo de minimizar ou maximizar. E era necessário saber os estados inicial e final para alcançar esse objetivo; era conhecer os efeitos antes do início das causas.” (CHIANG, 2016, p.2439) Trata-se de uma percepção de mundo distinta da humana, calcada em um sentimento trágico radical (em que tudo estaria predeterminado) mas desprovido de pathos, da dor envolvida na revelação (e no cumprimento) desse destino. Essa tragédia sem pathos (a “interpretação teleológica dos fatos”, conforme a personagem) é marcada no enredo do filme pela morte da filha da personagem principal: desde antes de seu nascimento, conhece-se as circunstâncias de sua morte e, ainda assim, nada pode ser feito (e nada é lamentado). Em A chegada, o contato acontece em uma sala dividida por uma grande tela retangular transparente, também suporte para a escrita alienígena. No espaço da tela, o próprio tempo (ou sua percepção) deixa de existir enquanto linearidade. Ao mesmo tempo, distintas visões de mundo, talvez intercambiáveis, mostram-se apenas incomunicáveis.
    Ao tratar do conceito de pós-verdade, Dunker defende que sua retórica seria “icônica”, com mensagens “em pacotes de informação, com imagens e textos, que se apresentam como um ‘todo de uma vez’”. E conclui: “Isso degrada a narrativa da viagem a um percurso sem memória”. (DUNKER, 2017, p.260) As mensagens de comunicação instantânea do WhatsApp (bem como plataformas como o Facebook, o Twitter e o Instagram) funcionam dessa maneira: as mensagens são lidas rapidamente, de maneira “blocada”, gerando uma reação pré-determinada (likes, compartilhamentos), em grande parte das vezes mais emocional que racional. Ainda segundo Dunker, abandona-se a prática da escuta (tão cara ao autor, que é psicanalista). A tela em A chegada tem a mesma função de uma tela de computador ou de celular: ela reduz a comunicação de visão de mundos distintas a seus componentes icônicos. Os alienígenas representam algo radicalmente a-histórico (ou “sem memória”), uma superação do humano que parece apontar não para o futuro, mas para o passado: se, em arte, os ícones nos remetem à Idade Média, parece mais compreensível (apesar de não menos criticável) o reaparecimento de, por exemplo, um movimento terraplanista. Estaremos de volta ao tempo dos tribalismos?

Bibliografia

    CHIANG, Ted. História da sua vida e outros contos. (e-book) Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
    DUNKER, Christian. “Subjetividade em tempos de pós-verdade”. In: DUNKER, Christian et al. Ética e pós-verdade. (e-book) Porto Alegre: Dublinense, 2017.
    MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
    MOREIRA, Carlos André. “A chegada, dirigido por Denis Villeneuve, e a ficção científica como espelho do imaginário social”. Interfaces Brasil/Canadá, vol. 17, nº 1, Florianópolis; Pelotas; São Paulo, 2017. pp. 195-199.
    ROJAS, Letícia Rodrigues; GOMES, Nataniel dos Santos “O relativismo linguístico no conto ‘História de sua vida’, de Ted Chiang”. Cadernos do CNLF, vol. XXI, nº 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2017. pp. 2195-2213.
    RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.
    SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 2007.