Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Barbara Cristina Marques (UEL)

Minicurrículo

    Doutora e Mestre em Letras (UEL). Professora de Literatura, Cinema e suas materialidades do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina. Professora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina.

Ficha do Trabalho

Título

    Partilhar o sensível do outro: I Had Nowhere To Go, de Douglas Gordon

Resumo

    No contexto dos conceitos de “Efeito cinema”, “Cinema expandido ou ampliado”, proponho uma leitura de I Had Nowhere To Go: Portrait of a displaced person (2016), de Douglas Gordon, baseado no livro-diário homônimo de Jonas Mekas.
    O ponto de mobilização no filme de Gordon parece estar na ordem de uma tentativa de fetichização do dispositivo cinema, de modo a transmutar a poética de Mekas em uma experiência visual que convida o espectador a penetrar as imagens sob novos regimes de percepção.

Resumo expandido

    No ano em que Jonas Mekas deixou esse plano, aos 97 anos, nada mais justo do que revisitar seu imenso arquivo e olhá-lo como o maior gesto de insubordinação que um displaced person podia ter tido na história do cinema. O fetiche pela câmera Bolex foi tão potente quanto a latência de uma escrita agarrada à experiência do não-lugar, aos estranhamentos, aos gestos de vidas que ali se eternizavam. Sobreviver ao maior genocídio do século XX empurrou Mekas à salvação de uma vida inseparável da palavra, do grão mínimo de imagens, elas mesmas vertidas naquilo que Emanuele Coccia (2010) nomeou como o sensível. Vários pensadores divagaram sobre a experiência manifesta no narcisismo da escrita, na palavra de autoridade (AGAMBEN, 2005) que desloca o ser impossível para a esfera de um “comum partilhado” (RANCIÈRE, 2005). Os signos desse “comum” deram o tom político da reconstrução e do reavivamento que faria a poética de Mekas tão singela quanto desconcertante.
    Entre 1944 e 1955, Mekas escreve seus diários, desde a saída da Lituânia para os campos de trabalho forçado até sua chegada a Nova Iorque. O recolhimento desse material viria a público, em 1991, com a publicação de I Had Nowhere to Go. Diary of a Displaced Person, livro este que constitui a essência de todo seu percurso filmográfico e de escritura. Esses onze anos de sôfrega escrita revelou o lugar comum de alguém a viver ao lado de muitos, de transmutar a possessividade do privado em um ato absolutamente coletivo. Pode-se falar de uma travessia que, a um só tempo, esteve marcada pela formação de cineasta e por uma insistência pela vida repleta de sensações a singularizar inúmeros ensaios fílmicos. Se o mundo/obra de Mekas opera na dimensão do sensível abrigada na memória e na experiência, é preciso questionar: como é possível partilhar o sensível do outro?
    No contexto dos conceitos “efeito cinema” (DUBOIS, 2017), “cinema expandido ou ampliado” (YOUNGBLOOD, 1970), proponho uma leitura do filme I Had Nowhere to Go: Portrait of a displaced person (2016), de Douglas Gordon, baseado no livro-diário de Mekas, provocada por inúmeras inquietações na ordem da relação cinema-literatura-vídeo enquanto potências de experiências afetivas. Poderíamos dizer haver um hiato entre a obra de Mekas e o trabalho visual de Gordon, completamente estruturado nas novas tecnologias da imagem. Se, de um lado, a imagem trêmula, doméstica, plena de realidade e presença, de Mekas, põe em xeque a relação com o cinema “industrial”, a força do experimental no trabalho com uma montagem que consegue, ao mesmo tempo, colocar fragmentos de modo disperso e equalizar uma narrativa que se torna seu projeto estético, pode indicar a afinidade com Gordon.
    O filme de Gordon, com 97 minutos de projeção, levado às salas de cinema em diversos festivais e mostras de cinema, é composto de imagens falaciosamente aleatórias, intercaladas a muitos minutos de ausência de imagem, em que a tela fica preta. A voz inconfundível de Mekas lê, quase todo tempo, trechos desse diário de modo fragmentário. A experiência imersiva proposta por Gordon obriga o espectador a suspender seu olhar, a montar os saltos de significação – dados pelas pouquíssimas imagens que surgem – e a “interpretar” o irrepresentável da experiência do corpo exilado. O trabalho de Gordon está nesse lugar do precário, na fricção das passagens de imagens em processo de transitoriedade, na desarticulação ou no desvio do espaçotemporal, no ponto de fuga das imagens em fluxo. Atrevo-me, portanto, a olhar o filme de Gordon como uma obra altamente provocativa, capaz de dar relevo a uma série de questionamentos a respeito das teorias que discutem as medialidades e as materialidades dos corpos midiáticos, da escrita e das imagens. I Had Nowhere to Go é uma obra sobre Mekas, mas, antes, é um filme sobre como os atravessamentos entre cinema, vídeo e literatura se materializam e desmaterializam diante do olhar estranhado do espectador.

Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da História. Belo Horizonte: 2005.
    COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.
    DUBOIS, Philippe. Sobre o “Efeito Cinema” nas instalações contemporâneas de fotografia e vídeo. In: MACIEL, Katia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017, p. 81-87.
    MEKAS, Jonas. Ningún lugar adonde ir. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Caja Negra, 2017.
    RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34: 2005.
    YOUNGBLOOD, G. Expanded Cinema. New York: P. Dutton & Co., Inc., 1970.