Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Erly Milton Vieira Junior (Ufes)

Minicurrículo

    Erly Vieira Jr é Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (2012). Professor do Departamento de Comunicação Social da UFES desde 2008, onde é coordenador do grupo de pesquisa Comunicação, Imagem e Afeto. Também integra o corpo docente do programa de pós-graduação em Comunicação e Territorialidades (POSCOM) da mesma instituição. Também atua como curador e realizador audiovisual.

Ficha do Trabalho

Título

    O gasto soberano como modo de existir/resistir no cinema queer

Seminário

    Corpo, gesto e atuação

Resumo

    Como as noções batailleanas de soberania, excesso e gasto/dépense, nos permitem pensar certos modos de existência de sujeitxs LGBTs, como formas de resistência? Para entender isso, buscamos articulá-las a aspectos sensórios e estratégias de encenação presentes em filmes de dois contextos históricos do cinema queer: o da pedagogia sociocultural dos anos 80-90 (Línguas desatadas, The living end) e o da câmera-corpo/ pedagogia dos desejos pós-2000 (Madame Satã, Mal dos trópicos e Na Vertical).

Resumo expandido

    O sol que dá sem nunca receber e que se gastará até sua última chama, servindo a ninguém senão a si mesmo: esta é uma das imagens-sínteses da noção de soberania segundo Bataille. Gastar-se por si só, sem se submeter a nenhum princípio de utilidade ou de acumulação de riquezas e energias – e, assim, mergulhar na potência da diferença, do heterogêneo, contemplar o indizível que aflora de nossos próprios abismos. Embora a obra de Bataille seja originalmente uma crítica ao capitalismo a partir de experiências limítrofes (erotismo, êxtases espirituais), algumas de suas ideias podem ser retomadas para se entender os modos de existir/resistir de sujeitxs queer que não se adequam às “linhas retas da heteronormatividade” (AHMED, 2006) e que, como consequência disso, estabelecem relações diferenciadas e desviantes com outros corpos, objetos, espaços e saberes.
    Aqui, o estar à margem é historicamente reelaborado a partir de uma série de variáveis, como por exemplo, a teatralidade excessiva do camp, a estetização cotidiana do dandismo, a experimentação sexual atrelada à erotização da linguagem, e a ressignificação do fracasso não como derrota, mas como uma arma política de recusa (HALBERSTAM, 2012), prazer e enfrentamento diante da opressão. Uma língua menor, refletida na subversão de diversos aspectos estéticos, narrativos e políticos do cinema sob um viés LGBT/queer, o que nos leva a pensar que modos dissidentes de existência exigem modos também dissidentes de produção de imagens.
    Baltar (2015) identifica a coexistência de duas pedagogias dentro do cinema queer: uma de caráter sociocultural (predominante nos anos 80 e 90), centrada em dar visibilidade às diferenças nas sexualidades não-hegemônicas, trazidas para o centro da ação dramática; e outra, a “pedagogia dos desejos”, a conectar o corpo do espectador numa partilha afetiva e desejante com os corpos filmados e suas potências. A ascensão desse segundo regime de imagens, a partir dos anos 2000, requer a adoção de novos modos de engajamento sensório e estratégias de encenação, capazes de articular os corpos em cena, o corpo fílmico e os corpos espectatoriais a partir da produção e difusão do desejo.
    Neste trabalho, investigamos algumas estratégias com as quais certos filmes traduzem experiências corpóreas desviantes que se aproximam às ideias de excesso, dépense e soberania tais como concebidas por Bataille. Partimos de duas obras audiovisuais do New Queer Cinema, na tensão entre as duas pedagogias: Línguas desatadas (Marlon Riggs, 1989) e The living end (Gregg Arakki, 1992). Aqui, falaremos tanto da produção de excesso camp nos gestos e trejeitos corporais como demarcação identitária, quanto da opção pelo gastar-se irrestritamente como única alternativa à precariedade existencial e à incerteza quanto ao próprio futuro, no contexto da crise da aids na virada dos anos 80 para os 90 (na tensão entre soberania e fracasso/recusa).
    Num segundo grupo de filmes, onde a pedagogia dos desejos atua mais intensamente, nos concentraremos nas estratégias com que a câmera-corpo eclode como instância de desestabilização narrativa, convidando o espectador, por contágio, a experimentar sensível e excessivamente as lógicas desviantes desses sujeitos filmados, dispostos a gastarem-se até o fim: seja pela embriaguez orgíaca da câmera que contagia as três instâncias corporais durante a performance da Mulata do Balacochê, em Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002); pela experiência limítrofe do indizível (que muito se aproxima da “experiência interior” batailleana), sobrepondo a banalidade cotidiana e a dimensão espiritual, numa imersão sonora e visual de caráter háptico e erótico em Mal dos trópicos (Apichatpong Weerasethakul, 2004); e no fracasso proposital da jornada do herói empreendida em Na vertical (Alain Guiraudie, 2016), em que o desvio passa a ser a lógica que coreografa os corpos em espaços e papéis sexuais constante e inesperadamente queerizados ao sabor dos desejos e ansiedades do protagonista.

Bibliografia

    AHMED, Sara. Queer phenomenology: Orientations, objects, others. Durham: Duke University Press, 2006.
    BALTAR, Mariana. “Femininos em tensão: Da pedagogia sociocultural a uma pedagogia dos desejos”. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus. New queer cinema: Cinema, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2015.
    BARKER, Jennifer. The Tactile Eye: Touch and the cinematic experience. Berkeley: University of California, 2009.
    BATAILLE, Georges. A experiência interior. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
    __________. A parte maldita – precedida de A noção de despesa. Lisboa: Fim de século, 2005.
    HALBERSTAM, J. Jack. “Repensando o sexo e o gênero”. In: Miskolci, Richard e Pelúcio, Larissa. Discursos fora da ordem. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2012.
    SCHOONOVER, Karl e GALT, Rosalind. Queer cinema in the world. Durham/London: Duke University Press, 2016.
    SOBCHACK, Vivian. Carnal Thoughts: Embodiment and Moving Image Culture. Berkeley: University of California Press, 2004.