Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    João Vitor Resende Leal (ECA-USP / Fapcom)

Minicurrículo

    João Vitor Leal é doutorando com bolsa FAPESP do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (ECA-USP), mestre em cinema (Paris-3) e professor assistente do curso de Produção Audiovisual da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (Fapcom).

Ficha do Trabalho

Título

    A encarnação monstruosa: entre ator, personagem e figura

Seminário

    Corpo, gesto e atuação

Resumo

    Esta comunicação pretende discutir a relação entre ator e personagem a partir do fenômeno da encarnação. Tomando como exemplo figuras monstruosas que atravessam vários personagens/atores no cinema de horror, recorreremos à ideia de encarnação para analisar o personagem como uma entidade paradoxal, incorpórea e invisível em si mesma, mas dependente de um ou de vários corpos capazes de lhe conferir alguma visibilidade.

Resumo expandido

    Quando o linguista Roman Jakobson afirma que Santo Agostinho seria, retroativamente, o primeiro teórico do cinema (BETTETINI, 1973, p. 182; MICHAUD, 1989, p. 17), sua declaração parece abrir novas perspectivas para a análise do personagem cinematográfico, permitindo aproximar a relação entre ator e personagem do fenômeno da encarnação que, na teologia cristã, permite figurar (em Jesus Cristo) o incorpóreo e invisível (deus).

    A partir dessa aproximação, que toma o ator de cinema como um receptáculo provisório de entidades autônomas e externas a ele, pretendemos avançar nossa investigação acerca da noção de personagem em cinema. Se, por um lado, a fisicalidade e a performatividade do ator podem estar além (ou aquém) daquilo que é programado por seu personagem, por outro lado o personagem também pode extrapolar as manifestações do ator que o encarna, abrindo brechas que, a nosso ver, explicitam o funcionamento mesmo do processo de encarnação que nos interessa analisar.

    Ao longo da exposição, recorreremos sobretudo à figura do monstro, cuja nomenclatura já nos antecipa uma cisão entre o ator e o personagem, o ser e o parecer, a essência e a aparência: na origem da palavra monstro, o termo latim monstrare se afasta da concepção habitual de personagem como uma identidade individual, um “ser ficcional” (CANDIDO, 2011, p. 55) constituído aos moldes da pessoa humana, para enfatizar justamente o próprio ato de mostrar, revelar, exibir, expor.
    Nesse sentido, argumentaremos que, como uma “forma extrema de alteridade” (NAZÁRIO, 1998, p. 29) que “nos lembra, na incerteza de suas semelhanças, as primeiras obstinações da identidade” (FOUCAULT, 1999, p. 218), o monstro não está muito distante da concepção cristã de deus, promovendo estratégias distintas de figuração.

    Dentre essas estratégias, destacaremos, no universo dos filmes de horror, precisamente aquelas que operam uma inequívoca disjunção entre ator e personagem, como ocorre em Vampiros de almas (Don Siegel, 1956), O enigma de outro mundo (John Carpenter, 1982) e Corrente do mal (David Robert Mitchell, 2014). Nesses filmes, a criatura monstruosa, sob pretextos diegéticos diversos, é por si mesma incorpórea e invisível, mas capaz de saltar de um corpo a outro parasitando e se multiplicando através de inúmeros personagens humanos. Veremos que, nesses filmes, ensaia-se então uma espécie de meta-encarnação, um meta-discurso que nos permite compreender melhor a dimensão ontológica do personagem cinematográfico: assim como o personagem humano se encarna no ator, a criatura monstruosa se encarna no personagem humano, numa dinâmica que, além de servir aos desdobramentos de uma trama narrativa, explicita a energia figural que vem animar o personagem para além de seus habituais revestimentos antropomórficos.

Bibliografia

    BETTETINI, G. The language and technique of the film. The Hague, Paris: Mouton, 1973.
    BRAGANÇA DE MIRANDA, J. Corpo e imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008.
    BRENEZ, N. De la figure en général et du corps en particulier. Bruxelas: De Boeck Université, 1998.
    CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011.
    FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
    GARNIER, X. L’éclat de la figure: Étude sur l’antipersonnage de roman. Berlim, Berna, Bruxelas: PIE/Peter Lang, 2001.
    MICHAUD, P.-A. “Théologie et cinéma: Le personnage incarné”. Admiranda, nº 4, 1989, pp. 17-21.
    NAZÁRIO, L. Da natureza dos monstros. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.
    OIDA, Y. O ator invisível. São Paulo: Via Lettera, 2007.
    ROSSET, C. Impressions fugitives: L’ombre, le reflet, l’écho. Paris: Les Éditions de Minuit,
    2004.
    SCHEFER, O. ”Qu’est-ce que le figural?”. Critique, nº 630, 1999, pp. 912-925.
    STOICHITA, V. Breve história da sombra. Lisboa: KKYM, 2016.