Trabalhos Aprovados 2019

Ficha do Proponente

Proponente

    Pedro Vinicius Asterito Lapera (UFF/FBN)

Minicurrículo

    Docente do PPGCINE/UFF e pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional. Áreas de interesse: História do audiovisual brasileiro ; Audiovisual e Antropologia; censura a obras audiovisuais (cinema e televisão); relação entre Estado e campo do audiovisual no Brasil. Contato: plapera@gmail.com

Ficha do Trabalho

Título

    “Civilizações” em conflito: cinema no Rio de Janeiro da Belle Époque

Seminário

    Exibição cinematográfica, espectatorialidades e artes da projeção no Brasil

Resumo

    Inserindo-se em uma perspectiva que transita entre a história e a etnografia, esta comunicação analisará um fait divers ocorrido em fevereiro de 1916 em um cinema do Rio de Janeiro: uma discussão entre espectadores finalizada com um tiro. A questão principal que irá nortear nossa discussão é: de que modo estes sujeitos pertencentes à classe média e à elite projetaram algumas tensões sociais no consumo cinematográfico por ocasião do fait divers a ser analisado?

Resumo expandido

    Em uma manhã de fevereiro de 1916, quase às vésperas do Carnaval, os leitores dos jornais cariocas foram surpreendidos por um fato insólito: um tiroteio em um dos cinematógrafos do Rio de Janeiro. Atônitos, os cronistas dos diversos periódicos relataram versões e detalhes sobre o curioso fato que se passara na véspera no Cinema Odeon, localizado na Avenida Rio Branco, bem no coração da nova cidade planejada pelo prefeito Pereira Passos.
    O fait divers do Odeon ocupou espaço nos jornais ao longo dos meses seguintes, que acompanharam com avidez o desenlace da acolhida bizarra em uma sessão de cinema. Apresentaram publicamente os protagonistas do conflito e os lances em torno do julgamento do crime, destacando detalhes em suas narrativas que corroboravam suas versões e tomando partido por um dos lados.
    O objetivo desta comunicação é mostrar como, apesar de ser um fato que não tenha tido impacto nos rumos da conturbada Primeira República, as narrativas veiculadas entre os meses de fevereiro e junho de 1916 pelos periódicos cariocas podem ser consideradas indícios de tensões sociais projetadas no ato de ir ao cinema. Ainda, defendemos que alguns detalhes em torno dessas narrativas podem nos ajudar a compreender certos horizontes de expectativas em torno do consumo cinematográfico enquadrados pela visão dos setores médios da população.
    Consideramos as narrativas veiculadas pelos periódicos depositados na Biblioteca Nacional em torno deste fait divers vestígios da formação de uma cultura ligada aos setores médios que vinha então se estabelecendo. Ainda, suspeitamos que o consumo cinematográfico mostrou-se fundamental na afirmação de alguns valores ligados a essa cultura de classe média. Para fins desta comunicação, consideramos cultura como “as estruturas de significado através das quais os homens dão forma à sua experiência” (Geertz 1989: 207).
    É preciso fazer uma breve exposição sobre as fontes utilizadas neste trabalho. Em um primeiro momento, foram coletadas, no acervo físico depositado na instituição quanto no acervo digitalizado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, 98 fontes – entre artigos, charges, editoriais, cartas de leitores enviadas à redação dos jornais – em 10 periódicos que circulavam pela cidade do Rio de Janeiro, uma amostra da razoável repercussão que o fato teve à época. Em um tratamento posterior, selecionamos dentre aqueles, 39 fontes como corpus a ser analisado.
    A discussão proposta transitará em torno da apresentação pública do conflito e de seus personagens, a relação com o ato de ir ao cinema e as diferentes abordagens propagadas pela imprensa carioca. A questão principal que irá nortear esta comunicação é: de que modos estes sujeitos pertencentes à classe média e à elite projetaram algumas tensões sociais no consumo cinematográfico por ocasião do fait divers a ser analisado?
    Enquadramos nosso esforço dentro da discussão de John e Jean Comaroff a respeito de como a etnografia deve lidar com a imaginação histórica. Segundo os autores, “ essas ‘histórias ocultas’, parciais, precisam ser situadas em mundos mais complexos de poder e significado que deram vida a elas” (1992: 17). A concepção de história dos autores “envolve a sedimentação de micropráticas e macroprocessos” (1992: 38) e se revela crucial para a nossa discussão, visto que precisamos considerar a relação entre os fragmentos deixados pelo tempo a respeito deste fato e sua inserção em processos de estruturação e mudança social.
    Nossa hipótese principal é a de que o fato analisado envolve dois polos em termos de classe que estruturam a dinâmica do seu desenlace, sendo uma metonímia de uma série de conflitos entre visões de mundo e de agir dessas classes. Todavia, esses polos não podem ser lidos de modo absoluto, uma vez que as posições variam no conflito e são perpassadas por categorias ligadas a raça e a gênero, embora em menor escala.

Bibliografia

    ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela Época do Cinema Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1985.
    COMAROFF, John & Jean. Ethnography and historical imagination. Oxford, Boulder: Westview Press, 1992.
    ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
    GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média (1815-1914). São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
    ___________. 1988. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Cia. das Letras.
    GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 1989.
    GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
    LAPERA, Pedro. Civilização tropical em perigo: cinema, elite e classes médias na Belle Époque carioca. Mana [online]. 2018, vol.24, n.1, pp.71-102.
    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.