Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Josué da Silva Bochi (UFF)

Minicurrículo

    Graduação em Cinema (2014) pela Universidade Federal Fluminense. Mestrado em Filosofia (2016), na linha de pesquisa de Estética e Filosofia da Arte, também pela UFF.

Ficha do Trabalho

Título

    O sujeito (extra)ordinário: ética e estética em Eduardo Coutinho

Resumo

    A partir da constatação da contradição entre a ordinariedade de sua matéria e do efeito extraordinário dos documentários de Eduardo Coutinho, em sua capacidade de nos fazer perceber o outro como mais do que aparenta ser, proponho a interpretação do caráter (extra)ordinário do sujeito a partir de um modo “estético” e de um modo “ético”. O objetivo é mostrar como a relação entre ética e estética na obra de Coutinho é um processo em aberto e como tal processo é determinante para a evolução da obra.

Resumo expandido

    Os documentários de Eduardo Coutinho, sobretudo a partir de “Santo Forte” (1999), foram recorrentemente interpretados através da contradição entre a ordinariedade de sua matéria – as histórias que pessoas quaisquer contam para o diretor – e, por outro lado, a força extraordinária de suas performances e dos arranjos compostos para os filmes. Numa passagem de um texto de 2004, Ismail Xavier identifica a percepção dessa contradição como o propósito mesmo dos filmes de Coutinho: “seu cinema recente – notadamente ‘Edifício Master’ – se faz para evidenciar que as pessoas são mais do que aparentam e não menos” (XAVIER, 2010, p. 76). Mas como se faz essa passagem, e, em primeiro lugar, o que está em jogo quando se pensa que alguém é “mais” ou que é “menos”?
    Parto da observação de que há dois modos ou dois lugares de pensamento sobre a arte a partir dos quais se pode interpretar a duplicidade do sujeito (entre o ordinário e o extraordinário) dos filmes de Coutinho. Primeiro, há o modo que se pode chamar de “estético”,que remonta à tradição do realismo do século XIX e seu propósito de subverter a hierarquia dos temas e tornar qualquer sujeito passível de representação. O que interessa aqui não é o outro em si, mas o “quase-outro”, isto é, a inscrição nas obras de marcas do outro como forma de “respiração de uma sociedade, sedimentação da matéria, trabalho do pensamento inconsciente” (RANCIÈRE apud GUIMARÃES, 2004, p. 7). Em segundo lugar, há um modo “ético”, sob efeito das catástrofes históricas e da evolução da cultura da imagem. Nesse caso, o outro é interpretado como singularidade excepcional e inassimilável, que pode ser sugerida ou eventualmente testemunhada na temporalidade instantânea de um encontro. É nesse sentido que José Carlos Avellar sugere, a propósito de “Jogo de Cena” (2007), que “o documentário é o instante em que o gesto da pessoa que filma se alinha com o da pessoa filmada e com o da pessoa que vê o filme” (AVELLAR, 2010, p. 133).
    A aposta de Coutinho em “Santo Forte” pode ser pensada como uma estética documentária fundada num princípio ético, capaz de nos aproximar da singularidade do outro. De fato, ao dispensar praticamente todos os meios de “falar por cima” da pessoa que conta sua história (como narração em off, uso de inserts e montagem cruzada dos depoimentos), os filmes de algum modo favorecem a inclusão do espectador numa “cena ética”, duplicando a disposição de “esvaziamento de si” que Coutinho considera um princípio prático no momento do encontro. No entanto, a valorização do encontro perde de vista, em relação ao outro, a necessidade de um distanciamento ficcional para a elaboração de uma verdade sobre si (cf. Zizek), e, em relação ao espectador, a vitalidade “morna” das imagens para além de sua dimensão de testemunha (cf. Didi-Huberman e Rancière). Assim, talvez seja mais adequado e mais provocativo pensar na aposta do documentário de Coutinho através das tensões entre uma posição “ética” e uma “estética”, e suas diferentes modalidades de realismo ou de sugestão do “extraordinário”. O descompasso entre as posições surge na reflexividade do dispositivo de “Jogo de Cena”, filme em que os relatos passam das bocas de mulheres que viveram as experiências que contam para as de atrizes que as reencenam. Mas surge também através de procedimentos mais sutis, tais como o recurso recorrente da seriação dos depoimentos: ainda que ninguém seja consequência de ninguém, como dizia Coutinho, é nas passagens, ecos e acúmulos que há uma “respiração de uma sociedade”, que Coutinho nunca teria deixado de buscar.
    O desafio talvez seja o de empreender um retorno à estética através de uma obra de inegável matriz ética. No fim das contas, a potência política do documentário só se realiza de fato quando o “direito da pessoa” abre espaço para o “direito da personagem” (COMOLLI, 2008, p. 168), isto é, direito à representação e direito à cidade de uma existência que não precisa – e nem deve – coincidir exatamente com um corpo.

Bibliografia

    AVELLAR, José Carlos. “A câmera lúcida”. Em: MIGLIORIN, Cezar (org). Ensaios no real. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

    COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (orgs). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. “Quando as imagem tocam o real”. In: Pós, v.2, n.4, Belo Horizonte, 2012, pp. 204-219.

    GUIMARÃES, César. “A experiência estética e a vida ordinária”. Em: E-Compós, Belo Horizonte, n.1, 2004.

    OHATA, Milton (org). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

    RANCIÈRE, Jacques. Aesthetics and its discontents. Cambridge: Polity, 2009.

    RANCIÈRE, Jacques. Nas margens do político. Lisboa: KKYM, 2014.

    XAVIER, Ismail. “Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna”. Em: MIGLIORIN, Cezar (org). Ensaios no real. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

    ZIZEK, Slavoj. The fright of real tears. Londres: British Film Institute, 2001.