Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Anita Leandro (UFRJ)

Minicurrículo

    Anita Leandro é professora da UFRJ e pesquisadora do PPG-Com, com mestrado e doutorado em cinema na Université Paris 3. Foi professora do Nutes-UFRJ, onde ajudou a criar o Banco de Imagens da Saúde. Na Université Bordeaux 3, coordenou o master profissional Réalisation de Documentaires et Valorisation des Archives. Seu documentário “Retratos de identificação” (2014, 73 min.), realizado a partir de imagens das agências de repressão brasileiras, foi premiado no Brasil e na Europa.

Ficha do Trabalho

Título

    Montagem e estratégias políticas do cinema brasileiro entre 68 e 70

Mesa

    1968-2018: insurreições e imagens da história no cinema brasileiro

Resumo

    A partir do retorno a filmes brasileiros de meados de 68, evocaremos a inquietante atualidade de duas obras centrais desse período: Manhã cinzenta, de Olney São Paulo (1968) e Você também pode dar um presunto legal, de Sérgio Muniz (1970). Diante da urgência da história, Olney São Paulo retoma imagens documentais numa ficção e cria, assim, uma memória possível; Sérgio Muniz, por sua vez, insere imagens ficcionais num documentário e aborda, por essa via, um tema arriscado, os esquadrões da Morte.

Resumo expandido

    Realizados num período de recrudescimento das lutas sociais e da repressão, “Manhã cinzenta” e “Você também pode dar um presunto legal” são filmes emblemáticos da resistência do cinema brasileiro à ditadura. Por causa de seu filme, Olney São Paulo pagou, como se sabe, com a própria vida. E o filme Sérgio Muniz, rodado clandestinamente, sequer pôde ser projetado, sob pena de colocar em risco a vida dos membros da equipe. Garrafas lançadas ao mar, rumo a um futuro incerto (2018?), essas obras, que hoje deveriam fazer parte do programa escolar obrigatório, seguem à margem da história, evocadas de vez em quando em trabalhos universitários, mostras e festivais.
    Propomos, aqui, um estudo das estratégias de montagem nesses dois filmes, com o intuito de compreender suas respectivas leituras do momento histórico de suas realizações. Para além de uma aproximação estética das duas obras, buscaremos, em seus procedimentos de montagem, informações sobre o engajamento político de cada uma delas, às vésperas do AI-5 e sob sua vigência.
    A partir de um roteiro de 1966, Olney São Paulo filma em 1968, nas ruas do Rio, ainda com margem de manobra para driblar a censura e integrar à sua ficção as manifestações em curso. O mesmo já não acontece com o filme de Sérgio Muniz, rodado a partir de 1970, às escondidas, sob a mira do AI-5, da pena de morte e do delegado Fleury, encarregado do extermínio das esquerdas. Entre documentário e ficção, os filmes constroem narrativas complexas desse passado recente e colocam para o presente, uma pergunta incômoda: 1968, no Brasil, realmente, terminou? Difícil saber, como tampouco se sabe, de fato, quando começa o 68 brasileiro. Em 1964? Talvez. Uma historiografia atenta às raízes do aparato repressivo e de sua ligação com a luta de classes precisaria retornar à primeira metade do século XX, quando se esboça a imagem do “inimigo interno”, com a criação da DEOPS, em 1924, transformada em DOPS, em 1945. O cinema brasileiro de 1968-70 traz as marcas de uma longa história de repressão, inscritas no próprio corte de alguns filmes.
    Suspeito de participação no primeiro sequestro de avião pela guerrilha, em 8 de outubro de 1969, o cineasta Olney São Paulo é preso poucos dias depois. Desviado da rota Belém-Manaus, o avião segue para Havana, com 43 passageiros, três tripulantes e uma cópia de “Manhã cinzenta”, adquirida um dia antes por um dos sequestradores, Elmar Soares de Oliveira, membro da Federação de Cineclubes. Mantido incomunicável por doze dias, o cineasta é interrogado pelos ministérios da Aeronáutica e da Justiça e declara desconhecer as intenções do cineclubista. Olney sai da prisão com pneumonia dupla e morre em 1978, aos 41 anos de idade, com câncer no pulmão. Apesar da censura, “Manhã cinzenta” reúne cenas de ficção, imagens documentais da televisão e performances de atores em meio a verdadeiras manifestações de rua, filmadas por José Carlos Avellar, estratos da tempo sedimentados na montagem, que buscaremos analisar.
    Você pode dar um presunto legal começa onde o filme de Olney termina, ou seja, com a morte. Primeiro filme sobre os esquadrões da morte e um de seus chefes, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, “Presunto” é feito num momento de grande perigo e encontra na encenação de verdadeiros depoimentos e em citações de trechos de peças teatrais a possibilidade de falar dos crimes do Estado. Mesmo na clandestinidade, a produção consegue inserir na montagem uma imagem inédita, da condecoração do torturador Sérgio Fleury pela Marinha. Quando “Presunto” foi, finalmente, lançado em 2006, o documentarista Luiz Alberto Sanz previu que o filme iria enfrentar dois graves problemas: “a desinformação sobre o caráter essencial da repressão (…), bem como o fato de que a pequena burguesia, hoje como ontem, em lugar de rejeitar os esquadrões da morte, considera-os um mal necessário” (SANZ, 2007). Em 2018, a premonição de Sanz se confirma, sob o silêncio geral imposto pelas milícias à sociedade e ao cinema.

Bibliografia

    AGAMBEN, G. Karman. Court traité sur l’action, la faute et le geste. Seuil, 2018.
    BOUCHERON, P. & HARTOG, F. L’histoire à venir. Anacharsis, 2018.
    DAVI SANTOS, M. Olney São Paulo: maldição e esplendor em Manhã cinzenta. UEFS, 2013.
    DIDI-HUBERMAN, G., org. Soulèvements. Paris: Gallimard, 2016.
    JOSÉ, Angela. Olney São Paulo e a peleja do cinema sertanejo. Quarteto, 1999.
    KOSELLECK, R. Estratos do tempo. Contraponto, 2014.
    KRACAUER, S. L’histoire des avants-dernières choses. Stock, 2006.
    MACHADO, I. “Relações dialógicas no filme Manhã cinzenta (1969) de Olney São Paulo”. In: Ditaduras revisitadas. CIAC/Universidade do Algarve, 2016, pp. 667-687.
    ROCHA, G. “Paulo São Olney 78”. In: Revolução do cinema novo. Alhambra/Embrafilme, 1981, pp. 364-367.
    SANZ, L. A. “A resistível ascensão da Morte Cruel”. In: Educação pública, 2007.
    http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/cinema_teatro/0043.html
    Consultado em 04/05/2018.
    TORRES MAGALHÃES, F. O suspeito através das lentes. Humanitas, 2008.