Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro (UFBA)

Minicurrículo

    Marcelo R. S. Ribeiro é professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual, atuando desde maio de 2017 na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É doutor em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (2016), com pesquisa sobre cinema e direitos humanos. Criador e editor do incinerrante.com e do aquem.in (com Juliana Costa), atua também como crítico e como curador e programador de cinema.

Ficha do Trabalho

Título

    Retomar o passado: a escravidão em filmes africanos

Seminário

    Cinema Negro africano e diaspórico – Narrativas e representações

Resumo

    Embora exista uma diversificada iconografia da escravidão transatlântica, imaginar a experiência da escravidão é, em alguma medida, confrontar o inimaginável. Por meio da análise exploratória de filmes ficcionais africanos que se dedicam a essa confrontação e ao dever imaginativo que a ela corresponde, esta comunicação interroga as configurações narrativas que conferem legibilidade à história do fenômeno e as articulações de imagem e som que tornam possível inscrevê-lo em formas sensíveis.

Resumo expandido

    Na história das violações da dignidade humana que, em seu preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 cifrou como “atos bárbaros”, contra os quais o documento afirma a “consciência da humanidade” e o projeto cosmopolítico dos direitos humanos, a escravidão transatlântica ocupa uma posição central. Seja por constituir um dos casos mais extremos e sistemáticos do que o direito internacional contemporâneo denomina “crime contra a humanidade” e, ao mesmo tempo, em sua incidência sobre corpos negros, permanecer sem reparação, seja por definir uma herança histórica irredutível de diversas sociedades atuais e um dos fatores determinantes de incontáveis formas de violações de direitos humanos que continuam a ocorrer, a escravidão transatlântica corresponde a um dos traumas históricos mais densos e opacos dos tempos atuais, e se seu processo histórico está situado no passado, seus sentidos e sua herança permanecem constitutivos do presente. O fenômeno da escravidão contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo (WILLIAMS, 2012), participa da configuração do imaginário colonial/moderno (MIGNOLO, 2003; SHOHAT, STAM, 2006) e define, de modo profundo e irredutível, as sociedades europeias, americanas e africanas que configuram o chamado “mundo atlântico” (THORNTON, 2004).
    A vasta iconografia construída historicamente por escravistas e abolicionistas, assim como aquela que se prolonga no trabalho de memória que sucede as abolições, define parte das condições de legibilidade da história que fundamentam qualquer compreensão atual do trauma histórico da escravidão. Entretanto, como argumenta Marcus Wood (2000, p. 8; tradução nossa), “num sentido importante, as ondas de iconografia geradas na Europa e nas Américas por sucessivos momentos de emancipação não representam visualmente, de modo algum, a escravidão ou sua memória” e devem ser compreendidas, ao lado da “construção hagiográfica dos ‘defensores’ brancos da abolição”, como parte de “uma mitologia branca”. Ao mesmo tempo, escreve Wood (2000, p. 8), “o testemunho produzido pelos próprios escravos, que é frequentemente projetado por filtros criativos e econômicos brancos, é igualmente complicado em sua relação com o que quer que compreendamos como verdade histórica”.
    Se a “verdade histórica” e a escravidão como experiência permanecem, nesse sentido, irredutivelmente inimagináveis, a compreensão do trauma da escravidão e de sua herança contemporânea deve envolver uma confrontação do inimaginável. Enquanto a iconografia abolicionista se torna paradigmática no uso de imagens como denúncias de violações, o trabalho de memória em torno da escravidão associa a iconografia histórica, seja ela escravista ou abolicionista, a uma série de desdobramentos, em diferentes formas de expressão artística. Nesse contexto, procedimentos de fabulação e invenção reconfiguram as imagens existentes, deslocando os sentidos do passado a partir de posicionamentos no presente e conferindo ao trabalho de memória um sentido imaginativo. Uma possibilidade que se torna especialmente significativa, nesse sentido, é a retomada do passado pela perspectiva negra africana. Em filmes como Sankofa (Haile Gerima, 1993) ou Adanggaman (Roger Gnoan M’bala, 1999), por exemplo, a reivindicação do direito de olhar, de narrar e de imaginar o mundo que define o impulso originário dos cinemas africanos (RIBEIRO, 2016) incide sobre a escravidão. Articulando passado e presente, o tema é abordado, nas duas obras, por meio de configurações narrativas e de constelações de imagem e som que será preciso analisar, para que seja possível compreender os modos como os filmes constroem a legibilidade da história e, ao mesmo tempo, conferem consistência sensível à experiência da escravidão, de modo a interrogar três problemas fundamentais. Considerando a iconografia e as imagens existentes, como os filmes fabricam as imagens que faltam da escravidão como experiência?

Bibliografia

    MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
    RIBEIRO, Marcelo R. S. Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do olhar, retorno às origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos. Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 5, n. 2, p. 1–26, 2016.
    SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Tradução de Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
    THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico 1400-1800. Tradução de Marisa Rocha Morta. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
    WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
    WOOD, Marcus. Blind memory: visual representations of slavery in England and America. New York, NY: Routledge, 2000.