Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Nicholas Andueza (UFRJ)

Minicurrículo

    Nicholas Andueza é doutorando em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor de cinema em Nova Friburgo, além de editor de cinema e audiovisual.

Ficha do Trabalho

Título

    Uma segunda “última dança”: realismo, morte e memória no cinema

Resumo

    Quando aborda “Memory of the camps”, Jean-Louis Comolli nos fala de uma espécie de dança entre vida e morte, feita por nazistas que, forçados pelos Aliados, se abraçaram a cadáveres para carregá-los às valas. Tomo esse motivo da dança para abordar “S-21: a máquina de morte do Khmer Vermelho”, de Rithy Panh, em que ex-guardas demonstram “coreograficamente” como tratavam corpos de presos que já não estão mais lá. Neste percurso, observo relações entre morte, memória e realismo no cerne do cinema.

Resumo expandido

    Ao analisar o filme “Memory of the camps” (2014), que retoma imagens feitas pelas tropas Aliadas ao chegarem aos campos nazistas, Jean-Louis Comolli vê uma espécie de dança: quando soldados nazistas são obrigados pelos Aliados a enterrarem os corpos dos que morreram nos campos, eles se abraçam aos cadáveres para poderem movimentá-los, um a um, ao longo das valas. Ocorre aí uma estranha coreografia de corpos, uma valsa mórbida. Algo semelhante acontece em “S-21: a máquina de morte do Khmer Vermelho” (2003), de Rithy Panh, quando se filmam ex-guardas explicando e ensaiando coreograficamente em gestos e atuações a forma como tratavam os prisioneiros. As duas formas de dança (tanto a dos nazistas quanto a dos guardas Khmer), no momento em que são filmadas e montadas, disparam questões fundamentais que habitam a imagem cinematográfica, questões que evidenciam o elo entre realismo, morte e memória no audiovisual.

    Quando Comolli convoca a imagem da dança para falar do jogo móvel entre corpos de assassinos e vítimas, nazistas e judeus, corpos sadios e corpos terrivelmente desnutridos, enfim, entre corpos vivos e seus pares mortos, chega ao cerne do cinema: uma arte que se baseia não simplesmente no movimento, mas na morte e na vida do movimento, por meio dos processos de análise (congelamento e fragmentação do movimento em frames) e síntese (passagem rápida dos frames para criar a ilusão de movimento – e revivê-lo). É por isso que, segundo o autor, o cinema é capaz de suportar a imagem da morte: porque a morte habita a próprio cinema, como um de seus polos fundamentais. Há outros três eloquentes autores que também tratam de relações fundamentais entre a morte e a essência do cinema: André Bazin, Sigfried Kracauer e Jean Epstein. Apesar de serem vastas as teorias de cada um deles, faço um recorte específico, para relacioná-los mutuamente sobre o tema do realismo no cinema e sua relação com a morte.

    Em sua célebre ontologia da imagem fotográfica, Bazin atrela o desejo de realismo que domina o Ocidente ao desejo de superar a morte. Na teoria fílmica de Kracauer, o cinema é inerentemente realista, e só se realiza em sua plena potência quando atua como o escudo de Perseu, ou seja, quando nos dá a ver horrores do mundo que são imensos demais para se olhar diretamente – o cinema permitiria fundamentalmente que nos debruçássemos sobre o abismo da morte. E Jean Epstein, em suas tentativas de delinear o que seria a “fotogenia”, que ele entendia como elemento específico do cinema, ressalta diversas vezes que, face à morte que ameaça objetos, seres e eventos aparentemente inertes do mundo, o cinema seria capaz não só de dar vida, mas de conceder à essa vida uma personalidade específica e singular.

    Em “S-21: a máquina de morte do Khmer Vermelho”, Rithy Panh parece escancarar um outro termo implícito no trio morte-cinema-realismo: a memória. Quando um dos ex-guardas, encenando, faz como se interagisse com um preso imaginário ao desacorrentá-lo para que fosse ao interrogatório, ao mesmo tempo que explica para a câmera o seu procedimento, fica posta uma disparidade radical: a absoluta presença do ex-guarda, filmado pela câmera, e a absoluta ausência do prisioneiro, que já não está mais lá, porque torturado e morto. Neste ponto, retorno a Bazin, Kracauer e Epstein para observar em quê seus escritos iluminam a relação entre cinema e memória a partir do realismo, relação tão cara ao filme de Rithy Panh.

    O cinema vem, então, como máquina que produz não imagens simplesmente, mas memórias: imagens ativas, que nos envolvem e implicam subjetiva e comunitariamente, que de certa forma tocam o indeterminado do real, ao passo que transformam este último ao colocarem-no em movimento por pelo menos uma vez mais.

Bibliografia

    BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

    COMOLLI, Jean-Louis. A última dança: como ser espectador de Memory of the Camps. Devires, Belo Horizonte, v.3, n.1, pp.8-45, jan.-dez., 2006.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Belo Horizonte, V. 2, n. 4, pp. 204-219, nov. 2012.

    EPSTEIN, Jean. Écrits sur le cinéma: tome 1. Paris: Édition Seghers, 1974.

    FRANÇA, Andréa; ANDUEZA, Nicholas. Camadas de ausência e a produção de sentido através do cinema de arquivo. Revista do Arquivo, São Paulo, ano II, n. 6, pp.113-128, abril de 2018.

    KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

    ___________________. Theory of film: the redemption of physical reality. Londres; Nova York: Oxford University Press, 1997.