Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Ana Caroline de Almeida (UFPE)

Minicurrículo

    Doutoranda no programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro, é integrante do coletivos Elviras (Mulheres Críticas de Cinema), da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e do Mape (Mulheres no Audiovisual Pernambuco). Faz parte da equipe curatorial do festival Olhar de Cinema (Curitiba) e escreve sobre cinema no blog foradequadro.com

Ficha do Trabalho

Título

    Um cinema nacional em levante: sintomáticos gestos desobedientes

Seminário

    Cinema brasileiro contemporâneo: política, estética, invenção

Resumo

    Resistência ora poética, ora raivosa, ora orgasmática. Mas em todos os casos, sempre uma resistência que nasce do disfarce e é criada no ponto cego do panóptico social. Em várias sequências do cinema nacional contemporâneo, há a repetição do gesto de uma desobediência silenciosa. O objetivo deste artigo é, a partir de uma prancha com algumas dessas sequências, entender de que modo, juntas, elas podem apontar para a existência de um Levante, de natureza coletiva e pública, do próprio cinema.

Resumo expandido

    A câmera dá a ver e ouvir aquilo que nasce como um ato invisível e silencioso. Em duas sequências cinematográficas, a ponta do metal rasga a lataria do carro e, no rosto de quem deixa essa marca, a expressão de uma raiva tão contida quanto a água de uma represa naquele segundo antes de surgir em sua parede a primeira fenda. As cenas em questão estão presentes em dois filmes brasileiros lançados em 2013: O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, e Riocorrente, de Paulo Sacramento. Não coincidentemente, 2013 será também o ano em que uma barragem se rompe no Brasil, no corpo de um movimento de rua que continha em si mesmo todas as ambiguidades e contradições do cenário sócio-político do país. As sequências que exibem esses dois personagens imprimindo, anonimamente, a marca de uma frustração acumulada, antecedem e, de certa forma, prenunciam o que se daria no extracampo do cinema nacional produzido nesse período.
    O gesto do risco intencional no carro não é um, portanto, que deva ser tomado por menos. Quando ele surge em dois filmes que, de formas completamente distintas, discutem essencialmente um mal-estar urbano, a repetição desse gesto deixa de ser acaso para ser lido como sintoma. Mas, para além de sintoma de algo bastante específico como o cenário político brasileiro, essas sequências ganham potência quando passamos a observá-las como traços sobreviventes de um campo energético que vai muito além dos filmes onde elas surgem. Porque talvez não tenhamos visto exatamente essas cenas antes. Mas certamente já vimos essas imagens antes. Pois elas contêm o páthos de um enfrentamento, uma insubordinação astuciosa, feita na intenção de deixar sua assinatura gravada no espaço sem que se saiba quem a assinou. Uma desobediência que só pode se fundar na não existência de testemunhas. E, no entanto, a câmera que naturalmente seria o olho aniquilador a frustrar esse movimento de latarias de carros sendo riscadas, termina por amplificá-lo.
    Que história nos contam as faíscas produzidas no contato não somente entre essas duas sequências, como de outros planos do cinema nacional contemporâneo, presentes em filmes como Esse amor que nos consome (2012), Nova Dubai (2014) e Branco sai preto fica (2014)? O que na “iconologia dos intervalos” (MICHAUD, 2013), ou seja, naquele espaço aparentemente vazio entre uma imagem e outra, pode implicar que há um princípio ativo em comum que faz com que esses planos ou sequências se atraiam. Propõe-se aqui criar uma prancha com algumas dessas imagens, não para buscar nela um sentido conclusivo na sua montagem, mas certamente uma sensação, uma energia que chama essas sequências para um mesmo campo magnético.
    O princípio ativo em questão diz respeito ao conceito de levante, em sua natureza pública e coletiva: “O levante é um pôr-se de pé junto a outros contra uma forma de poder, é se mostrar e se fazer ouvir em situações nas quais, justamente, não é permitido se pôr de pé” (BUTLER, 2017). Isoladas em si mesmas, muitas dessas sequências não poderiam ser tomadas como um levante. Mas se acionarmos todas ao mesmo tempo, num mesmo espaço, não poderíamos visualizar um levante, público e coletivo, operado pelo próprio cinema nacional? E que tipo de levante seria esse que age quase sempre à espreita do olhar? Que marcas e fissuras ele deixa no caminho?
    No cenário sócio-político do Brasil dos anos 2010, o cinema nacional se alimenta de um imaginário do mal-estar dos tempos, de um desconforto latente em se viver nas grandes cidades e, particularmente pós-2013, se alimenta também de um gradual pessimismo diante das perspectivas políticas do país. Ao colocar as sequências aqui selecionadas juntas, percebe-se um campo energético que oscila entre a contenção de energia e o corpo que se levanta. É possível identificar que, quando mergulhamos nos intervalos entre essas sequências, nos encontramos no espaço de um cinema que, absorvendo e retroalimentando o ambiente onde nasce, produz um grito abafado.

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Mágia e Técnica, Arte e Política, trad. Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

    BRUNO, Giuliana. Atlas of emotion. Nova York: Verso, 2002.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente – História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

    BUTLER, Judith. Levante. In: DIDI-HUBERMAN, Georges. Levantes, trad. Jorge Bastos; Edgar de Assis Carvalho; Mariza P. Bosco; Eric R. R. Heneault. São Paulo: Edições Sesc, 2017.

    MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.