Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Vitor Zan (Paris 3)

Minicurrículo

    Graduado em cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina, concluiu o mestrado em estudos cinematográficos e audiovisuais na Universidade Paris 3, onde cursa atualmente o doutorado. Atua temporariamente como professor na Universidade Paris 7.

Ficha do Trabalho

Título

    Uso e abuso da referência a Casa-Grande & Senzala pelo campo do cinema

Seminário

    Cinema comparado

Resumo

    Críticos, cineastas e acadêmicos fazem incontáveis referências ao livro Casa-grande & Senzala ao comentarem filmes como O som ao redor, Doméstica, Que horas ela volta? e Aquarius. A maioria dessas alusões não condiz, entretanto, com a perspectiva de Gilberto Freyre, e tampouco leva em conta aquilo que distancia os filmes do pensamento do sociólogo. Restringindo-se à esfera do conteúdo, tais aproximações deixam ainda inexploradas uma vasta gama de correspondências possíveis.

Resumo expandido

    Ao menos desde 2012, com o lançamento de O som ao redor e de Doméstica, é notável o sem-número de referências, por parte de críticos, cineastas e estudiosos do cinema brasileiro, ao livro Casa-grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. A tendência se intensificou com a chegada de Casa grande, Que horas ela volta?, ou mesmo Aquarius, o que nos levou, por um lado, a examinar o teor dessas alusões e, por outro lado, a propor novos tipos de correspondência entre essas obras e o pensamento do sociólogo, sejam eles de aproximação ou de distanciamento.

    Muito embora onipresente, a referência a Casa-grande & Senzala é geralmente fortuita, e não condiz com o universo descrito por Freyre. Trata-se, no mais das vezes, de tomar o livro como ícone das injustiças do passado colonial, esquecendo que o ponto de vista de Gilberto Freyre sobre a escravidão no Brasil é fortemente idealizado. Em seu intuito de positivar a miscigenação supostamente originária do povo brasileiro, o autor dá ênfase à complementaridade entre antagonismos, o que o leva a sustentar, por exemplo, que o sadismo do colonizador português coadunou-se com um suposto masoquismo da negra ou da índia, afirmando ainda, por essa mesma lógica, que “o sistema casa-grande-senzala […] chegara a ser – em alguns pontos pelo menos – uma quase maravilha de acomodação : do escravo ao senhor, do preto ao branco, do filho ao pai, da mulher ao marido”. Ou seja, as menções a Freyre tendem a omitir o que, no decorrer da história, se tornou retrógrado em sua obra.

    Afora as divergências, é proveitoso incluir nesse exercício comparativo elementos que ultrapassem a esfera do conteúdo, refletindo, por exemplo, sobre as relações entre a linguagem escrita do sociólogo e a linguagem audiovisual dos cineastas, ou ainda entre o tipo de sociologia desenvolvido em Casa-grande & Senzala e a corrente do realismo social a qual os filmes tendem a se filiar. Com efeito, a sintaxe despojada de Casa-grande & Senzala levou a afirmação de que “o livro […] se torna quase uma novela”, criando uma experiência de leitura cujos efeitos são em certos pontos típicos do realismo (como o efeito de real, de “revelação” do familiar, ou de simples proximidade entre obra e leitor-espectador). A atenção que Freyre atribui aos escravos faz eco na iniciativa dos artistas realistas do século XIX, que passaram a incluir as classes desfavorecidas em suas obras, o que nos filmes se manifesta pela densidade conferida a empregados domésticos, que deixam de ser figurados como meros elementos do cenário.

    A metodologia inusitada de Gilberto Freyre, que leva em conta elementos corriqueiros, tidos como desprezíveis, bem como sua “paixão pelo detalhe, […] pelo concreto”, fazem pensar no fato de que as alegorias dos filmes estão organicamente atreladas a pormenores do dia-a-dia, tendo sido elaboradas por “cineastas-habitantes” cujas obras foram amplamente nutridas pela observação do cotidiano. O lugar de fala do escritor também se assemelha ao dos cineastas no que diz respeito ao pertencimento à elite. E embora todos tenham se esforçado para se opor a perspectivas dominantes em sua classe, suas obras guardam resquícios de uma perspectiva elitista. Contudo, contrariamente ao que querem alguns comentadores, o pensamento de Freyre não é tão esquemático quanto os filmes, ainda que a forma polinuclear de O som ao redor remeta ao mosaico composto pela argumentação de Freyre.

    A perspectiva do sociólogo promove uma reconciliação reconfortante do povo brasileiro com seu passado, enquanto que os filmes, sobretudo O som ao redor, ressaltam o mal-estar, salientam o desarranjo social, visando compor um vetor de transformação por esse viés crítico. Daí a diferença no tom geral das obras, mais descontraído em Freyre e mais tenso nos filmes. Ainda assim, uns e outros compartilham a tentativa de vislumbrar, no ambiente familiar, no seio das habitações, relações de poder capazes de compor um microcosmo das relações sociais de uma comunidade.

Bibliografia

    ARAGÃO, Solange. Ensaio sobre a casa brasileira do século XIX. Blucher, 2017.
    AUMONT, Jacques (dir.). Pour un cinéma comparé: influences et
    répétitions. Cinémathèque française, 1996.
    BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma ? Cerf, 1999.
    CHAMPFLEURY, Jules. Le réalisme. Michel Lévy frères, 1857.
    DE CERTTEAU, Michel. L’invention du quotidien. Gallimard, 1980.
    FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Global, 1933.
    – – – – – Sobrados e Mucambos. José Olympio, 1977 [1 ed. 1936] LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro : história de uma ideologia. Pioneira, 1976.
    SEASSAU, Claude. Émile Zola : le réalisme symbolique. José Corti, 1989.
    SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso – da escravidão à Lava Jato. Leya, 2017.
    VERSIANI, Flávio Rabelo. Escravidão “suave” no Brasil – Gilberto Freyre tinha razão? Revista Economia Política, v. 27, n. 2, p.163-183, 2007.