Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Fernanda Bastos Braga Marques (ECO – UFRJ)

Minicurrículo

    Fernanda Bastos é editora audiovisual desde 1999, tendo editado os mais diversos produtos como programas de TV, comerciais, clipes e filmes – incluindo curta e longa metragens, bem como filmes de artistas – em diversas produtoras no Rio de Janeiro.
    Jornalista e mestre pela ECO – UFRJ, cursa agora doutorado na linha de Tecnologia da Comunicação e Estéticas na mesma instituição. Sua pesquisa atual trata do tempo visível: imagens do tempo engendradas por aparelhos e dispositivos.

Ficha do Trabalho

Título

    DESMONTAR PARA RECONTAR

Seminário

    Montagem Audiovisual: reflexões e experiências

Resumo

    Sempre atento ao seu tempo, Jean-Luc Godard constrói “Je vous salue, Sarajevo”, um filme curtíssimo, em que tudo tem seu teor concentrado. A partir de duas fotografias e discursos múltiplos, o cineasta interroga a cultura de seu tempo, questionando a maneira como a sociedade europeia lida, culturalmente, com a morte, a guerra e o semelhante. Nesse artigo, veremos como tudo isso se articula através do processo da montagem audiovisual.

Resumo expandido

    Je vous salue Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard, é um curta-metragem de apenas 2’09”, feito a partir de uma fotografia da Guerra da Bósnia (1992-1995). Trata-se de um filme-ensaio de montagem, ou seja, parte de elementos criados com outros fins – fotografias, música e poemas – e cria um nexo entre eles no processo de montagem.
    A montagem não é uma propriedade exclusiva do cinema, embora seja essencial para sua existência. Ela está presente na colagem dadaísta e na fotomontagem surrealista e expressionista, que, por sua vez, recebem influência de diversos aspectos da modernidade, como, por exemplo, a linha de montagem fordista e a arquitetura modular. (COCCHIARALE, 2007, p. 9) Muitos estudiosos do cinema discutem a montagem como criadora de narrativa, entre eles Jacques Aumont (AUMONT, 1995), Gilles Deleuze (DELEUZE, 1983) e André Parente. (PARENTE, 2000) A montagem é, sem dúvida, uma atividade fundamental do cinema e se dá pela associação de dois elementos independentes que resultam em um terceiro diferente dos originais. É ela que estabelece a relação de cada elemento com o todo, criando a linguagem de um filme, que inclui narrativa, ritmo e forma.
    No caso de Je vou salue Sarajevo, antes de juntar componentes na ilha de edição, foram necessários alguns outros estágios: o primeiro gesto do processo de montagem é escolher uma única fotografia, que é uma imagem fixa, para ser a imagem de um filme que é, essencialmente, imagem em movimento. Isso indica a opção estética pela interrupção do fluxo imagético, cinematográfico e dos acontecimentos. Para migrar de um meio para outro, o autor atribui à imagem uma duração e junta um som e um título – o segundo passo da montagem é a escolha desses componentes externos à fotografia. A terceira etapa é a decupagem (processo de divisão em planos de cada cena durante o planejamento de uma filmagem), a refilmagem dos elementos internos da cena fotografada, o recorte da imagem em dezoito enquadramentos diferentes do original, que atribui maior ou menor peso aos elementos da cena, construindo assim a dramaticidade. Nessa operação Godard privilegia os detalhes, que são índices, provas e personificações da catástrofe, assunto recorrente em sua obra; e constrói o filme combinando essas dezenove imagens, com a trilha sonora e com a narração em voz off feita por ele mesmo, além de duas cartelas (de início e de fim) e uma segunda fotografia em preto e branco – do ator Karl Hern encenando em 1977 a peça Ghost Trio, de Samuel Beckett – que funciona como um breve epílogo.
    A imagem escolhida guarda a potência e a latência do conflito, indica sua continuidade: imediata, no caso da situação fotografada, e crônica, no caso da Europa, a quem o cineasta interpela nominalmente em sua narração. Essa imagem remete diretamente ao tempo (associado visualmente ao movimento), porque marca a interrupção no fluxo dos acontecimentos e evoca um agora remoto, um isso foi ou um rastro. É essa fotografia saturada de agoras que Godard utiliza para se comunicar com passado.
    Godard atua como um terceiro, como aquele que “inscrevendo um possível fora do par mortífero algoz-vítima, dá novamente um sentido humano ao mundo”. (PIRALIAN e ALTOUNIAN, apud GAGNEBIN, 2006, p. 57) Ele é o terceiro que ouve o testemunho da cultura e filma (e/ou monta) reconstruindo o elo entre homem e mundo que, segundo Deleuze, se desfez. Confronta como artista a sociedade de consumo com aquilo que ela produz e consome ciclicamente: imagem e guerra. Ele apresenta ao espectador três posições possíveis diante da guerra: a de vítima, a de algoz e a de cúmplices que desviam o olhar mantendo o dedo no gatilho, mas oferece uma quarta possibilidade, a de testemunha19 que reflete a história do outro para não repeti-la. (GAGNEBIN, 2006, p. 57)

Bibliografia

    AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas. Papirus. 1995.
    BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996.
    COCCHIARALE, Fernando. Filmes de Artista – 1965-1980. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007. Catálogo
    DIDI-HUBERMAN. Images malgré tout. Paris: Les Éditions du Seuil, 2003.
    DELEUZE, Gilles. Cinema – A Imagem Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.
    ________. Cinema II – A Imagem Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013.
    GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Memória, história, testemunho. In: Lembrar esquecer escrever. São Paulo: Ed. 34, 2006.
    PARENTE, André. Cinema em contracampo. In: MACIEL, Katia (Org.). Cinema Sim: Narrativas e Projeções. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. Catálogo.
    RANCIÈRE, J. A ficção documentária: Marker e a ficção da memória; Uma fábula sem moral: Godard, o cinema, a histórias. In: A fábula cinematográfica. Campinas: Papirus Editora, 2013.