Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Renata Soares Junqueira (UNESP)

Minicurrículo

    Renata Soares Junqueira é bacharel (1987) em Letras, mestre (1992) e doutora (2000) em Teoria Literária pela UNICAMP. Livre-docente (2010) em Literatura Portuguesa pela UNESP, onde leciona literatura desde 1994 no campus de Araraquara. Organizou, dentre outros, os livros MANOEL DE OLIVEIRA: UMA PRESENÇA (SP: Perspectiva, 2010) e OS POBRES NO CINEMA DE MANOEL DE OLIVEIRA (SP: Todas as Musas, 2017). Co-organizou TEATRO, CINEMA E LITERATURA: CONFLUÊNCIAS (SP: Cultura Acadêmica, 2014).

Ficha do Trabalho

Título

    Os pobres no cinema épico de Glauber Rocha e no de Manoel de Oliveira

Resumo

    Esta comunicação propõe uma comparação de ACTO DA PRIMAVERA (1963), de Manoel de Oliveira, com BARRAVENTO (1961), de Glauber Rocha. O meu intuito é demonstrar como a representação dos pobres se faz, em ambos, por meio de um método disjuntivo de articulação do discurso cinematográfico que tende a evitar, à maneira do teatro épico de Brecht, a identificação compassiva ou precipitada do espectador com o pseudo-heroísmo ou com o pathos das personagens.

Resumo expandido

    Comparar o cinema de Manoel de Oliveira (1908-2015) com o de Glauber Rocha (1939-1981) tem sido para mim um desafio deveras estimulante. A proposta tem provocado em alguns estudiosos brasileiros de cinema e audiovisual manifestações de incredulidade na sua viabilidade, quando não uma irritação, mal encoberta, com a suposta impertinência da comparação pretendida. Isso porque à primeira vista parece não ter cabimento comparar um cineasta burguês, como foi Manoel de Oliveira – “um esteticista”, segundo algumas das alegações que ouvi em várias circunstâncias –, com um artista tão fortemente engajado e revolucionário como Glauber Rocha. Para superar essa desconfiança é preciso aceitar a pertinência de um olhar analítico que esmiúce na produção oliveiriana a dimensão política que as formas da sua linguagem cinematográfica implicam. Proponho, pois, nesta ocasião cotejar dois filmes realizados no princípio da década de sessenta: BARRAVENTO (1961) e ACTO DA PRIMAVERA (1963). O meu intuito é demonstrar como a representação dos pobres se faz, em ambos, por meio de um método disjuntivo de articulação do discurso cinematográfico que tende a evitar, à maneira do teatro épico de Brecht, a identificação compassiva ou precipitada do espectador com o pseudo-heroísmo ou com o pathos das personagens. Tal efeito de distanciamento, antípoda ao propósito catártico do discurso dramático, se alcança nas duas películas através de uma deliberada desnaturalização das cenas: ação, gestos e falas são ostensivamente artificiais, implicando sistematicamente o canto e a dança em BARRAVENTO e a salmodia em ACTO DA PRIMAVERA. Creio, pois, ser apropriado chamar de épico esse cinema.
    Veremos, com efeito, como os dois realizadores articulam, em forma épica, os mesmos elementos essenciais à caracterização da pobreza: corpo humano (com destaque, em ambos, para pés, pernas e mãos), trabalho e religião.
    BARRAVENTO retrata uma pequena comunidade de pescadores negros do litoral baiano, na Praia de Buraquinho. A ideia é mostrar o dia-a-dia de homens e mulheres negros e pobres, a sua força de trabalho explorada pelo empresário que lhes empresta a rede de pesca e o seu misticismo empecendo a libertação que o título desde logo anuncia: barravento, metáfora da desejada revolução, é um temporal que varre a praia toda para dar à comunidade a oportunidade de renovar a vida.
    Já em ACTO DA PRIMAVERA, filme em que os simples ocupam lugar central como intérpretes numa representação da paixão de Cristo – o mais simplesmente exemplar dentre os simples e humilhados –, a opressão do homem pelo homem e a reação da natureza contra o homem são consideradas de um ponto de vista religioso, como consequências do pecado original. Jesus Cristo surge para redimir a humanidade, mas esta ainda não é capaz de compreender os seus atos e a sua mensagem. A explicação do sofrimento humano é, pois, aparentemente diferente da que se vê no filme de Glauber, que aponta com clareza para a exploração da força de trabalho. Mas em última análise não são também só os pobres, os simples campônios que vemos suar para ganhar a vida no filme português?
    Se o filme de Glauber Rocha é evidentemente político – ainda que se trate, segundo Jean-Claude Bernardet, de uma “política de cúpula” –, o de Manoel de Oliveira não deixa de indicar a grande problemática que está na origem de tantas atrocidades e de tanto sofrimento para a humanidade: o dinheiro – não aquele que se ganha com o trabalho árduo e honesto que se vê no princípio do filme, mas o que se obtém sem trabalho, insidiosamente, visando ao lucro fácil –, eis o grande mal. A cena da expulsão dos vendilhões do templo e do diálogo entre Judas e o diabo é, pois, fulcral, tematicamente articuladora de toda a diegese e elo de ligação semântica entre os fragmentos iniciais do filme e os do desfecho, que mostram as consequências catastróficas da ganância levada a extremo. Em última análise, é sobre exploração e lucro que versam as duas películas.

Bibliografia

    BAECQUE, Antoine de, PARSI, Jacques. (org.), Conversas com Manoel de Oliveira. Tradução de Henrique Cunha. Porto: Campo das Letras, 1999.

    BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

    BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro: para uma arte dramática não-aristotélica. Tradução do alemão por Fiama Hasse Pais Brandão. Lisboa: Portugália, 1964.

    EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Apresentação, notas e revisão técnica de José Carlos Avellar. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

    ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Pref. Ismail Xavier. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

    _____. Revolução do cinema novo. Pref. Ismail Xavier. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

    XAVIER, Ismail. Barravento: alienação versus identidade. In: _____. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.