Ficha do Proponente
Proponente
- Felipe Ferro Rodrigues (USP)
Minicurrículo
- Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestre e bacharel pela mesma instituição, editor de som e técnico em som direto. Dedica-se à pesquisa do som e da voz no cinema e na televisão desde a graduação, com foco especial nas articulações entre voz e corpo e nos melodramas audiovisuais. Atualmente concentra-se no estudo das relações den ventriloquia no cinema.
Ficha do Trabalho
Título
- “Watch my mouth!”: voz, lipsync e ventriloquia em Veludo azul
Resumo
- Nesta comunicação analisamos Veludo azul (Blue Velvet), 1986, de David Lynch, nos debruçando sobre as relações entre voz, corpo e ventriloquia. Partindo da fragmentação sensorial sugerida pela imagem da orelha amputada que inicia a trama, investigamos como o deslocamento (ou tentativa de deslocamento) da voz, via dublagem e lipsync, opera como transação sensual e dispositivo de poder, evidenciando a voz como locus do erótico e a boca como objeto de fetiche.
Resumo expandido
- Veludo azul (Blue Velvet), de David Lynch, tem sido, desde seu lançamento em 1986, inspiração para investigação e debate teórico amplos a partir das mais diversas abordagens, da leitura feminista embasada na psicanálise de Lynda Bundtzen (1988) e Laura Mulvey (1996) à análise holística de Michel Chion (1995) e ao estudo sob o prisma do melodrama de Jörg Metelmann e Scott Loren (2013). Amparada por esse arcabouço teórico, e incorrendo frequentemente ao campo dos estudos da voz, esta comunicação se debruça sobre as relações entre voz, corpo e ventriloquia no longa-metragem de Lynch e examina a maneira como elas escancaram dinâmicas de controle e erotismo.
Logo nos minutos iniciais, somos apresentados, em superclose, a uma orelha amputada — imagem inaugural que não apenas dá início à trama, mas que também posiciona Veludo azul como uma obra “de e sobre som” (Kaleta, 1993, p. 93). A orelha desconectada do corpo antecipa a lógica fragmentária que se impõe ao longo do filme, em que órgãos sensoriais parecem existir de forma autônoma, prenunciando o corte entre voz e corpo que estrutura o universo sonoro do filme. Dorothy, interpretada por Isabella Rossellini, encarna esse desmembramento: crooner do Slow Club, ela canta a canção-título sob luz azul do Slow Club. É esse canto, apesar de pouco melodioso, que magnetiza Jeffrey e excita Frank.
A dublagem emerge então como chave para se compreender o jogo de poder que sustenta a relação entre o trio edípico identificado por Bundtzen (1988). O lipsync, entendido aqui como fenômeno ventriloquial — uma voz que emana de um corpo ao qual não pertence — se manifesta de modo mais evidente em pelo menos três ocasiões no decorrer do filme.
A mais conspícua dessas ocorrências acontece quando Ben, interpretado por Dean Stockwell, dubla In Dreams, de Roy Orbison, como uma espécie de show privado para Frank. Usando uma lanterna industrial como microfone e exibindo um rosto maquiado, Ben empresta seu corpo à voz descorporificada da fita cassete. Ao contrário dos outros capangas, grotescamente masculinos, Ben tem um comportamento afetado, quase sedutor, dirigindo-se a Frank de maneira carregada de tensão homoerótica — o que instiga e simultaneamente perturba sua masculinidade.
Essa tensão se intensifica na cena seguinte, quando Frank e seus capangas dão uma surra Jeffrey ao som da mesma In Dreams. A canção serve, aqui, como veículo para uma confissão amorosa invertida, atravessada pela ameaça de morte e pelo descontrole. O gesto de Frank ao passar o batom vermelho de Dorothy nos próprios lábios e, em seguida, beijar Jeffrey repetidamente enquanto o espanca, reafirma a boca como fetiche e como zona de inscrição simbólica da voz do outro. Esse elemento retorna em outras cenas: os lábios de Dorothy em superclose, a boca muda e deformada do pai no pesadelo de Jeffrey.
A segunda instância de ventriloquia ocorre nos momentos em que Frank sincroniza silenciosamente seus lábios com a canção que ouve, seja ela In Dreams, seja Blue Velvet. Como descreve Steven Connor (2000), esse gesto revela o desejo de apropriar-se da voz do outro, de alojá-la no próprio corpo — uma ânsia ventriloquial movida por pulsões inconscientes. Ao tentar absorver a voz que o excita, Frank parece ser tomado pela jouissance que Michel Poizat (1992) associa à voz cantada: algo que ultrapassa o sentido e age diretamente sobre o corpo, perturbando-o.
Da orelha amputada à boca recortada, Veludo azul constrói uma rede de imagens e sons que tematiza a fragmentação da voz e do corpo. A voz, deslocada de seu emissor, opera como locus do erótico, como afirma Adriana Cavarero (2005): não apenas aquilo que expressa desejo, mas o próprio objeto do desejo. O som não acompanha a imagem — ele a desvia, a contamina, a domina. As tentativas de apropriação ou mediação da voz (pela fita, pela boca alheia, pela mímica) funcionam quase como transações sexuais, encenações de poder e vulnerabilidade.
Bibliografia
- BUNDTZEN, Lynda K. “Don’t Look at Me!”: Woman’s Body, Woman’s Voice in Blue Velvet. Western Humanities Review, vol. 42, no. 3, Fall 1988, p. 187–198.
CAVARERO, Adriana. For More Than One Voice: Toward a Philosophy of Vocal Expression. Stanford: Stanford University Press, 2005.
CONNOR, Steven. Dumbstruck: A Cultural History of Ventriloquism. Oxford: Oxford University Press, 2000.
KALETA, Kenneth C. David Lynch. New York: Twayne, 1993.
METELMANN, Jörg; LOREN, Scott. Irritation of Life: The Subversive Melodrama of Haneke, Lynch and von Trier. Marburg: Schüren, 2013
MULVEY, Laura. Cult etherworlds and the Unconscious: Oedipus and Blue Velvet. In: Fetishism and Curiosity. Suffolk: British Film Institute, 1996, p. 137–154.
POIZAT, Michel. The Angel’s Cry: Beyond the Pleasure Principle in Opera. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1992.