Ficha do Proponente
Proponente
- amanda iegli tech (ESPM-SP)
Minicurrículo
- Amanda Iegli Tech é jornalista, mestre em Sociologia pelo PPGS/UFRGS e doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo no PPGCOM da ESPM-SP. No mestrado, pesquisou processos de estigmatização e estudos críticos da branquitude. Atualmente, dedica-se aos estudos de experiência, estética e fabulações, com ênfase nas materialidades dos cinemas indígenas. Integra o grupo de pesquisa SENSE: Comunicação, Consumo, Imagem e Experiência (ESPM-SP).
Ficha do Trabalho
Título
- Para além da representação: a potência reparadora nos/dos cinemas indígenas
Resumo
- Este trabalho investiga a potência reparadora (ALMEIDA e MARCONI, 2022) dos cinemas indígenas por meio da análise de A Flor do Buriti (2023) e Mundurukuyü: A Floresta das Mulheres Peixe (2025), explorando como práticas indígenas que rompem com convenções do documentário hegemônico, como autoria (BRASIL, 2021), processos de feitura e o fora-de-campo (BRASIL e BELISÁRIO, 2016) configuram um cinema ontologicamente dissensual, abrindo caminho para outras formas de fabulação e existência.
Resumo expandido
- Nas práticas documentais hegemônicas, a imagem é frequentemente convocada a revelar uma verdade subjacente, expectativa que se intensifica nos cinemas indígenas, onde se projeta o desejo de acesso a uma “realidade autêntica”. Tal demanda, contudo, tende a reduzir a potência fabulatória dessas imagens, desviando o olhar de suas camadas sensíveis, invisíveis ou mesmo inalcançáveis, e inviabilizando uma antropologia reversa — conceito proposto por Brasil e Belisário (2016). Ainda que alguns filmes retomem a cena inaugural do contato entre indígenas e brancos, como Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006), essas narrativas não se limitam à violência, operando antes uma complexificação temporal que desestabiliza o espectador ao borrar as fronteiras entre passado e presente, entre ficção e registro, deslocando o cinema de uma função meramente representacional.
Como observam Brasil e Belisário (2016), é preciso pensar essas obras para além do que se vê na tela, pois o invisível incide nas imagens e na audiência. Nessa perspectiva, o fora-de-campo assume uma importância equivalente ao que se apresenta visualmente. Nas palavras dos autores, “o fora-de-campo será justamente o que torna permeável, o que permite a pesagem, no filme, entre mundos contíguos mas profundamente díspares, incomensuráveis” (BRASIL e BELISÁRIO, 2016, p. 606).
Da mesma forma, há produções indígenas que tensionam as próprias noções de autoria. É o caso de Wai’á Rini: o poder do sonho (Divino Tserewahú, 2001), cujo processo, segundo o cineasta, envolveu desmanche, remontagem e refeitura a partir de um olhar indígena “sempre múltiplo” (BRASIL e BELISÁRIO, 2016, p. 602). Essa abordagem dialoga diretamente com o outro trabalho de Brasil (2021), que repensa noções de autoria no contexto do cinema indígena.
A concepção de autoria coletiva não se restringe ao cinema nem a uma população indígena específica, mas parece atravessar diversas práticas ameríndias de criação. Como escreve Els Lagrou (2014), os povos ameríndios “não estão interessados em eliminar a mão que faz; pelo contrário, parecem visar à multiplicação, em vez da ocultação, dessas mãos mediadoras […]” (p. 770). Trata-se, portanto, de uma cosmologia da criação que se opõe à lógica da assinatura individual, e que valoriza a visibilidade das mediações e o caráter relacional do fazer artístico.
Consideramos estas práticas de cinema (desde o processo de feitura e montagem, coletivo e mediado, até seu resultado na imagem, ritmo e fora-de-campo) como reparadoras (ALMEIDA e MARCONI, 2022) no sentido de não se orientam por moldes ocidentais. Como discute Guimarães (2019), enquanto o pensamento ameríndio se abre à alteridade por meio de uma experiência estética — onde o outro é afirmado em sua potência e não assimilado —, o olhar ocidental tende a buscar na experiência estética um grau de diferença que possa ser consumido, entendido, apropriado. O cinema indígena, nesse contexto, propõe não apenas outras histórias ou personagens, mas um outro regime de sensibilidade.
A partir da compreensão dos cinemas indígenas como ontologicamente dissensuais, este trabalho constitui uma aproximação inicial — ainda em processo — aos estudos sobre esses cinemas, impulsionada pelo estranhamento diante de práticas que escapam às categorias analíticas convencionais. Reconheço, nessas obras, a proposição de outras cosmologias e estéticas como modos próprios de fabulação e experimentação. As práticas reparadoras que busco investigar manifestam-se tanto nos modos colaborativos de criação quanto em formas sensíveis que expandem a percepção para aquilo que escapa à visibilidade imediata. Para isso, serão analisadas duas obras recentes: A Flor do Buriti (Renée Nader Messora e João Salaviza, 2023) e Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres Peixe (Aldira Akay, Beka Munduruku e Rilcélia Munduruku, 2025), filmes desta década atravessados por nosso tempo, que tematizam, cada um à sua maneira, questões ligadas à demarcação de terras.
Bibliografia
- ALMEIDA, Gabriela, MARCONI, Dieison. Trabalhar imagens, reparar o visível: a política da imagem como prática reparadora. Revista FAMECOS (Porto Alegre), v. 29, jan.-dez. 2022, p. 1-13. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/revistafamecos/article/view/41827/27595.
BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo em filmes indígenas. Revista Sociologia & Antropologia, v. 06, p. 601-634, 2016.
BRASIL, André. Cineastas-guardiões: Hipótese sobre a autoria no cinema indígena. 2021.
GUIMARÃES, César. A estética que vem. In: PICADO, Benjamim (org.). Escritos sobre comunicação e experiência estética: segmentos, regimes, modalidades. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG, 2019, p. 56-76.
LAGROU, Els. “Existiria Uma Arte Das Sociedades Contra o Estado?” Revista de Antropologia, vol. 54, no. 2, 2011, pp. 747–80. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/43923886. Accessed 5 Apr. 2025.