Ficha do Proponente
Proponente
- James Zortéa Gomes (UNISINOS)
Minicurrículo
- Doutor em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS; Mestre pelo mesmo programa. Atualmente é professor dos Cursos de Realização Audiovisual (CRAV), Jogos Digitais, Design e no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, Artes e Tecnologia na Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS.
Ficha do Trabalho
Título
- Cultivar o Solo da Imagem: Resistência Indígena na Animação Brasileira
Resumo
- O texto constela relações entre solo, gesto e desenho em animações brasileiras, partindo de Sinfonia Amazônica (Anélio Filho, 1953) e articulando-a com Konãgxeka (Maxakali e Bicalho, 2016), Bárbara Balaclava (Martins de Melo, 2016) e Mitos Indígenas em Travessia (Vellutini e Rodrigues, 2019). A reflexão se ancora em Maxakali (2024), Silva e Carneiro (2018), Latour (2020), Kopenawa (2019), Nancy (2016) e Ingold (2015), destacando o solo como potência ética, estética e política.
Resumo expandido
- Sinfonia Amazônica (1953) constitui um marco na história do audiovisual brasileiro, não apenas por ser o primeiro longa-metragem de animação do país, realizado de forma pioneira por Anélio Filho, mas também por apresentar uma proposta narrativa voltada ao público infantil, estruturada a partir de lendas amazônicas. Produzido no contexto dos anos 1950 — período marcado por intensas transformações sociais, econômicas, urbanas e culturais, os chamados “anos dourados”, em que se consolidaram a urbanização, a industrialização e a sociedade de massa —, o filme destaca-se por exaltar a cultura brasileira, sobretudo em seus aspectos relacionados à fauna, à flora e ao folclore. O roteiro contou com a colaboração do folclorista Joaquim Ribeiro, que aponta um compromisso com a valorização dos saberes populares (SILVA e CARNEIRO, 2018, p. 38).
Passadas mais de sete décadas, torna-se essencial refletir sobre como obras de animação contemporâneas, produzidas em contextos de resistência e formação, atualizam processos criativos, estéticos e críticos de criação no cinema brasileiro. Nesse sentido, propõe-se constelar relações entre Sinfonia Amazônica (1953) e produções recentes como Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali (2016), de Isael Maxakali e Charles Bicalho; Bárbara Balaclava (2016), de Thiago Martins de Melo; e Mitos Indígenas em Travessia (2019), de Julia Vellutini e Wesley Rodrigues.
Ressoam, nesse contexto, as palavras de Isael Maxakali: “sem terra não tem cinema” (MAXAKALI, 2024). Sua afirmação ecoa como uma síntese das ações pedagógicas e dos gestos de resistência indígena presentes em sua produção, especialmente nos cantos e nos desenhos que compõem suas animações. Se a relação com o solo é condição fundamental para a criação, então nossas ações criativas devem ser exigentes, enraizadas nos fatos, orientadas por uma ética que emana da terra. Como observa Bruno Latour: “O solo permite se vincular; o mundo, se desprender” (LATOUR, 2020, p. 85).
Na animação brasileira contemporânea, persiste o cultivo de um solo fértil, distante das lógicas predatórias da agroindústria, cultivar pode ser compreendido como espaço simbólico e vital. Cultivo, nesse sentido, é um gesto de cuidado com o terreno do próprio ser — um espaço ainda indefinido, pleno de potência, no qual é possível fazer emergir algo potente. A liberdade de desvendar seu próprio nome, como na cultura Yanomami, na qual abandonam o apelido de criança para ganhar o nome “por conta própria”, tal como KOPENAWA (2019, p.71).
Esse solo vivo, ainda que instável, carrega infinitas potencialidades. Os desenhos — enquanto gestos de inscrição — mantêm uma relação profunda com a horizontalidade, com a gravidade, com o chão, com o habitar entre céu e terra. Jean-Luc Nancy observa que a imagem, mesmo quando não representa o céu, é atravessada por ele, pois “toda imagem tem seu céu […] ele dá a ela sua luz, mas a luz de uma imagem vem da própria imagem” (NANCY, 2016, p. 102). Assim, a imagem oferece um horizonte, um campo sensível que convoca atenção e presença. Como afirma Tim Ingold, “a terra e o céu estão inextricavelmente ligados dentro de um campo indivisível, integrado ao longo das linhas da vida entrelaçadas dos seus habitantes” (INGOLD, 2015, p. 125).
O solo, o gesto e o desenho oferecem rastros para uma trama analítica presente na materialidade dos filmes Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali (2016), de Isael Maxakali e Charles Bicalho; Bárbara Balaclava (2016), de Thiago Martins de Melo; e Mitos Indígenas em Travessia (2019), de Julia Vellutini e Wesley Rodrigues. Nessas obras, a animação se configura como um território expandido de criação e pensamento, em que os vínculos com o chão — simbólico e material — orientam os modos de narrar, resistir e imaginar. A partir desses filmes, é possível reconhecer práticas cinematográficas que se enraízam em experiências coletivas e insurgentes, onde o gesto criativo não se dissocia da vida, do território e da memória.
Bibliografia
- INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes Limitada, 2015.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Tradução de Marcela Vieira. Posfácio e revisão técnica de Alyne Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
MAXAKALI, Isael. Sem terra não tem cinema. Belo Horizonte, MG: NPGAU, 2024.
NANCY, Jean-Luc. A imagem–o distinto. outra travessia, n. 22, p. 97-110, 2016.
SILVA, Paulo Henrique; CARNEIRO, Gabriel. Animação Brasileira: 100 filmes essenciais. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2018.