Ficha do Proponente
Proponente
- KENIA CARDOSO VILACA DE FREITAS (UFS)
Minicurrículo
- Professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS) no curso de Cinema e Audiovisual. Fez estágios de pós-doutorado (CAPES/PNPD) no programa de pós-graduação em Comunicação na UCB (2015-2018) e no programa de pós-graduação em Comunicação da Unesp (2018-2020). Doutora pela Escola da Comunicação da UFRJ (2015). Foi curadora do Cinema do Dragão (2022-23) e realizou a curadoria de diversas mostras de cinema. Possui pesquisa sobre Afrofuturismo, Cinema Negro e Crítica de Cinema. Integra o FICINE.
Ficha do Trabalho
Título
- Dahomey (Mati Diop): sobre retornos e reparações (im)possíveis
Seminário
- (Re)existências negras e africanas no audiovisual: epistemes, fabulações e experiências
Resumo
- Essa comunicação propõe uma conversa entre Dahomey (Mati Diop, 2024) e os desejos (im)possíveis de retorno e reparação das populações afrodiaspóricas na contemporaneidade. A partir dos recentes atos reparatórios políticos e simbólicos envolvendo diferentes nações (Brasil, Benin, França, etc), desejamos pensar o lugar das instituições e criações artísticas nesse diálogo, nos questionando sobre as possibilidades das narrativas cinematográficas nesse sonho de reconstituição emancipatória.
Resumo expandido
- “O museu não é um espaço neutro, mas um campo de batalhas ideológicas, políticas e econômicas” (Vergès, 2023)
Em 2021, são devolvidos de um museu francês para o Benin 26 tesouros do Reino Daomé – sequestrados na França desde o século XIX. É desse retorno que trata Dahomey (2024), dirigido pela franco-senegalesa Mati Diop. O documentário acompanha em detalhes os múltiplos processos museológicos desse retorno (embalagem, transporte, recepção e restauração), assim como uma acalorada discussão por jovens universitários beninenses sobre os significados políticos e estéticos desse retorno. Afinal: o que significa essa volta para casa no cenário político-geográfico do século XXI?
Junto com esse processo observativo, essa jornada é narrada de forma poética por um dos 26 itens saqueados:
“Sou o rosto da metamorfose. Eu me vejo tão claramente através de você. 26 não existe. Dentro de mim ressoa o infinito. Eu caminho. Nunca vou parar”, diz o tesouro ao fim do filme.
O tom poético e profético da voz, é construído pelo texto do escritor haitiano Makenzy Orcel, e traduzido para o Fon. O processo transatlântico da narração marca as múltiplas alianças afrodiaspóricas e africanas (França-Benin-Haiti) da narrativa (e do momento histórico).
Afinal, no mesmo ano em que o filme foi lançado, em 2024, a filósofa Sueli Carneiro se tornou a primeira brasileira a se tornar cidadã do Benin. Representando mais uma iniciativa da nação africana de fortalecimento de relações transatlânticas. Na legislação recentemente aprovada em Benin, é considerado cidadão do país: “toda pessoa que, de acordo com sua genealogia, tenha um ascendente africano subsaariano deportado para fora do continente africano no contexto do tráfico de negros e do comércio triangular [que envolvia a troca de mercadorias —inclusive pessoas— entre África, Américas e Europa] (SANTANA, s/p, 2024).” Festejado em cerimônia pública com políticos e diplomatas dos dois países, a cidadania de Carneiro representou mais um movimento na tentativa de reparação histórica para as violências derivadas do processo de escravização.
Mas é realmente possível retornar? É possível retornar a casa para os artefatos e humanos roubados? Que experiência estética e de pertencimento se forjam a partir desses movimentos? Após o saque de pessoas e tesouros, como devolver e refazer pertencimentos? E, como o cinema e a arte de uma forma geral entram nessa conversa? Ou como nos questiona Saidiya Hartman, ao refletir sobre o desejo de retorno afro-estadunidense e o turismo que monumentaliza espaços ligados ao comércio transatlântico de escravizados, como Castelo da Costa do Cabo e ao Castelo de Elmina, em Gana, e à Casa dos Escravos, na Ilha de Gorée, no Senegal: “Como alguém pode voltar para um lugar que nunca foi ou nunca viu? O retorno, então, é uma figura que substitui uma linguagem mais adequada de anseio e distanciamento e que contradiz a inegável e definitiva diferença ao tentar consertar o irreparável?” (Hartman, 2021a, p. 245).
Desejamos também olhar mais detidamente para o espaço do museu e das instituições artísticas nesse processo. No livro “ Decolonizar o museu: programa de desordem absoluta”, Françoise Vergés formula a possibilidade de pós-museu: “Um exercício decolonial é imaginar formas diferentes de exposição e representação, é fazer exercícios de especulação fictícia. (…) Criar utopias emancipatórias dentro da tradição daquelas que os/as dominados/as alimentaram desde sempre permite agir e tornar possível o que todos acreditam impossível”. Seria também possível pensar nas possibilidades de um pós-cinema que ecoesse esses desejos emancipatórios?
Ressoando com esses acontecimentos e questões, essa comunicação propõe uma conversa entre o filme de Mati Diop e os gestos de retorno e reparação, possíveis (ou não) fabulados da contemporaneidade.
Bibliografia
- BRAND, D. Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre pertencimento. Rio de Janeiro: A Bolha Editora, 2022.
Carneiro, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023
ESHUN, Kodwo (2015). Mais considerações sobre o afrofuturismo. In: FREITAS, Kênia (org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. Tradução de André Duchiade. São Paulo: Caixa Cultural. p. 97.
Hartman, S. (2021). O Tempo da Escravidão. Revista Periódicus, 1(14), 242–262.
____________________. “Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão”. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 357p.
SANTANA, B. “Cidadania para a população afro-brasileira”. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 de dezembro de 2024, Colunas e Blogs.
VERGÈS, F. Decolonizar o museu: programa de desordem absoluta. Traduzido por Mariana Echalar. São Paulo: Ubu Editora, 2023.