Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Henrique Rodrigues Marques (UNICAMP)

Minicurrículo

    Docente dos cursos de Comunicação & Artes da Universidade São Judas Tadeu. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Multimeios, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, desempenhando pesquisa sobre representações e memória do hiv/aids no cinema brasileiro. Mestre pela mesma instituição. Além de pesquisador, atua como curador, colaborando com festivais como MOSCA, RECIFEST, Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo e Arder en la Frontera.

Ficha do Trabalho

Título

    Os dentes ficam: a doença e o corpo em “Romance” (1988) sob o signo de Artaud

Resumo

    Partindo da análise do Corpo sem Órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 1981), este trabalho pretende traçar aproximações entre os discursos e representações do corpo em “Romance” (Sergio Bianchi, 1988), um dos primeiros filmes a abordar a crise da aids no Brasil, e nos escritos de Antonin Artaud sobre corpo e doença. De acordo com Elsaesser e Hagener (2018), buscamos uma análise que pense com o filme em um gesto comparativo de inferência/interferência na qual o cinema se apoia na teoria e vice-versa.

Resumo expandido

    Segundo o sociólogo Chris Shilling, foi na década de 1980 que se popularizou e consolidou no terreno das ciências humanas uma área interdisciplinar denominada “estudos do corpo” (2023, p. 21). Embora o autor não cite o advento da aids como um dos possíveis motivos para o crescimento do interesse acadêmico no corpo enquanto objeto de pesquisa, é notável que o desenvolvimento do campo se deu contemporaneamente à crise do hiv/aids. Conceituando o biopoder, Foucault (2021) revela o sexo como um terreno a ser regulado através de técnicas disciplinares do corpo. Nesse sentido, a medicalização e a psiquiatrização das práticas sexuais se configuram enquanto tecnologias repressivas do corpo. Não por acaso, quase todos os trabalhos produzidos com a intenção de destrinchar a aids enquanto fenômeno social, em diferentes áreas das humanidades, elege o corpo como um epicentro analítico. Perlongher escreve sobre o “a ordem da morte na desordem dos corpos” (1987, p. 83); no seminal “Devassos no paraíso”, Trevisan nomeia o capítulo que introduz a crise da aids como “As peripécias do corpo” (2018, p. 393); Subero conceitua os “cuerpos suiSIDAs” (2014); ao passo que Hallas batiza seu livro com o título “Reframing bodies” (2009).
    Também não surpreende a recorrência de citações aos trabalhos de Artaud em diversos desses textos (TREVISAN, 2018; NEMI NETO, 2022). Sendo ele próprio vítima dos abusos do biopoder de diversas instituições, como a Medicina e a Psiquiatria, Artaud escreveu frequentemente sobre o corpo, a praga, as doenças da mente e as dinâmicas entre eles. Em um de seus escritos, ele declara guerra ao organismo e propõe a busca por um Corpo sem Órgãos, que servirá de base para conceituação teórica proposta por Deleuze e Guattari algumas décadas mais tarde. “The BwO isn’t opposed to the organs, but with its ‘legitimate organs’ which are to be composed and set. It is opposed to the organism, to the organic organization of organs. […] Because he cannot bear the BwO. Because he hounds it. Rips it open. To give precedence to this dreadful thing. The organism. The organism is already precisely that. The judgment of God. Which doctors profit and take their power from. The organism is not the body at all.” (DELEUZE; GUATTARI, 1981, p. 266).
    A leitura do Corpo sem Órgãos de Deleuze e Guattari pode ser facilmente comparada ao discurso fílmico de “Romance” (1988), longa-metragem dirigido por Sergio Bianchi com roteiro coescrito por Caio Fernando Abreu. Um dos primeiros filmes brasileiros a abordar a crise do hiv/aids, a narrativa acompanha a jornada de três personagens que passam por processos transformativos após a morte de Antônio César, um importante intelectual de seu tempo. Durante todo o desenvolvimento da trama, o corpo ocupa uma posição central, não apenas nas imagens, mas também nos textos declamados em vídeo por Antônio.
    Logo no início do filme, em uma dessas gravações na qual o intelectual reflete sobre a repressão do prazer, o personagem declara “E quando eu falo de prazer eu não estou falando do cineminha, da pizza do sábado. Eu estou falando do corpo, estou falando da carne.” Na cena seguinte, Fernanda, parceira de Antônio César, mostra a Regina a marca de uma mordida que seu recém-falecido amante deixou em seu corpo. “Ainda dá para sentir a pressão dos dentes dele. Ele foi embora, a marca ficou. Sempre fica alguma coisa depois que você se vai. Toque. Os dentes são claros, brancos. Os dentes ficam, não é? A cara toda apodrece, mas os dentes ficam”, diz ela. André, por sua vez, concretiza em seu corpo a experiência de repressão do desejo descrita por Antônio, ao ansiar por sexo e o contato com outros corpos enquanto teme a propagação de um vírus.
    Partindo dessa breve introdução, o trabalho pretende constelar cenas de “Romance” com os escritos de Artaud, ao mesmo tempo em que nos apropriamos das teorias de Deleuze e Guattari em consonância interdisciplinar com estudos de cinema através do sentidos (ELSAESSER; HAGENER, 2018).

Bibliografia

    ARTAUD, A. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 2019.
    ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
    DELEUZE, G.; GUATTARI, F. How to make yourself a body without organs. In: PERALDI, F. (Org.). Polysexuality. Semiotext(e), 1981.
    ELSAESSER, T.; HAGENER, M. Teoria do cinema: uma introdução através dos sentidos. Campinas: Papirus, 2018.
    FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
    HALLAS, R. Reframing Bodies: AIDS, Bearing Witness, and the Queer Moving Image. Durham: DUP, 2009.
    NEMI NETO, J. Cannibalizing queer: Brazilian cinema from 1970 to 2015. Detroit: WSU Press, 2022.
    PERLONGHER, N. O que é AIDS. São Paulo: Brasiliense, 1987.
    SHILLING, C. O corpo. Petrópolis: Vozes, 2023.
    SUBERO, G. Representations of HIV/AIDS in contemporary Hispano-American and Caribbean culture: cuerpos suiSIDAs. Farnham: Ashgate, 2014.
    TREVISAN, J. S. Devassos no Paraíso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.