Ficha do Proponente
Proponente
- marcelo pedroso holanda de jesus (UFRN)
Minicurrículo
- Marcelo Pedroso é professor do Departamento de Comunicação da UFRN. Sua tese de doutorado (PPGCOM-UFPE), “Antagonismos na imagem documental”, foi premiada pela Compós. Publicou “Comunidade dos contrários: um estudo sobre as relações de antagonismos no documentário” (Vacatussa, 2023). Dirigiu seis longas-metragens, entre os quais “Brasil S/A” (2014) e “Pacific” (2009), considerado um dos cem documentários brasileiros mais importantes da história pela Abraccine.
Ficha do Trabalho
Título
- Fundamentos exuísticos no processo criativo da montagem cinematográfica
Mesa
- Territórios sensíveis: cosmologias, corpos e encruzilhadas audiovisuais
Resumo
- A presente comunicação busca relacionar fundamentos da cosmologia de Exu, Orixá da comunicação e criatividade no xirê afro-brasileiro, às poéticas da montagem cinematográfica. Para tal, evocamos o marco conceitual da encruzilhada, pioneiramente apresentado por Leda Maria Martins, relacionando-o a relatos míticos transcritos nas obras de Nei Lopes e Reginaldo Prandi a fim de aferir sua ressonância com concepções teóricas de montagem cinematográfica.
Resumo expandido
- Em sua obra “Práxis do cinema”, Noel Burch define o corte como a operação mais elementar da montagem, permitindo a transição entre diferentes planos e a construção de uma narrativa visual. Entendendo o corte como momento transitório entre o virtual e o real, onde os múltiplos caminhos do filme se apresentam, buscamos associar a este gesto o conceito de encruzilhada, fundamental para a estruturação da cosmologia iorubana presente na cultura de matriz africana associada a Exu, Orixá da comunicação e da criatividade.
Através de sua obra “Afrografias da memória: O reinado do Rosário no Jatobá”, Leda Maria Martins tornou-se uma das pioneiras a legitimar, no campo acadêmico brasileiro, a ideia de encruzilhada como clave teórico-metodológica. Na concepção da autora, a encruzilhada se refere a um lugar de cruzamento semiótico que antecede o horizonte da religião e pode ser evocado como um princípio de cognição que estrutura o pensamento. Para Martins, o conceito diz respeito ao território, físico ou simbólico, onde as trocas se estabelecem favorecendo a negociação entre relações de conflito ou confluência e gerando um “lugar terceiro”, fundado sobre a instauração de algo novo.
No presente trabalho, buscamos identificar as ressonâncias entre a encruzilhada como “lugar terceiro” e a ideia de montagem cinematográfica como instância de criação em que, principalmente em sua vertente dialética, o choque entre duas imagens é responsável pelo surgimento de uma instância nova, irredutível à soma das duas partes isoladas. Tal compreensão é muito bem enunciada por Jean-Luc Godard quando afirmou, em entrevista a Régis Debray, que dentro de uma certa forma de organização das imagens, “sempre que há duas imagens, há três”. Na mesma linha, Jean Mitry propõe que a partir da associação entre as duas imagens, determina-se “na consciência que as percebe uma ideia, uma emoção, um sentimento estranho a cada uma delas isoladamente”.
A ideia de um “lugar terceiro”, emanado da interseção entre dois caminhos que se encontram na encruzilhada, reverbera o postulado da terceira imagem que surge do choque entre duas imagens na montagem cinematográfica e pode ser interpretado como fundamento exuístico a partir do itan que consagra Exu como “Senhor da Terceira Cabaça”. Em relatos míticos reunidos por Nei Lopes e Reginaldo Prandi, vemos como Exu, confrontado ao dilema de escolher entre uma cabaça contendo o bem absoluto e outra, o mal incondicional, pediu uma terceira cabaça e misturou os dois conteúdos dando origem a uma terceira substância, cujas propriedades fazem com que remédio possa ser veneno e vice-versa.
Desta forma, a partir de um corpus relacionado à experiência do autor como montador, buscamos situar o processo de decisões tomadas durante o processo de montagem como inscritas numa dinâmica de encruzilhada, potencialmente transformadora das qualidades individuais das imagens filmadas e produtora de significados e sensações estranhos ao campo dos planos tomados em separado.
Por fim, é importante salientar que através do gesto de relacionar a poética da montagem a fundamentos da cosmologia exuística, buscamos expandir o repertório instrumental de interpretação dos processos criativos relacionados ao cinema, arte surgida no contexto da modernidade europeia, de maneira a incorporar saberes e perspectivas que foram sistematicamente excluídos e perseguidos pelas ontologias que deram origem ao campo das práticas cinematográficas. Abre-se assim uma outra via de pensamento da e pela montagem.
Bibliografia
- BURCH, Noel. Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.
EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1990.
LOPES, Nei. Ifá Lucumí: O resgate da tradição. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: O reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
MITRY, Jean. Estética y Psicología del cine: 2. Las Formas. Traducción de Mauro Armiño. Madrid: Siglo Veintiuno editores, 1984
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001.