Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Pedro Henrique Villela de Souza Ferreira (PUC-Rio)

Minicurrículo

    Professor no curso de Estudos de Mídia da PUC-Rio e doutor pelo PPGCine da UFF. Pesquisa a
    relação entre cinema e mundos possíveis. Como crítico de cinema, atuou entre 2011 e 2022 na Revista Cinética. Organizou o livro “Fantasmas da Terra: a Poética de Apichatpong Weerasethakul” (Editora Machado). Foi curador de diversas retrospectivas e mostras na Caixa Cultural Rio, CCBB, e outros espaços. Dirigiu as séries de TV /Lost+Found (Canal Curta) e Seis Propostas Para Um Mundo Possível (CineBrasilTV).

Ficha do Trabalho

Título

    Os Duplos e Um Século: de Gryozy (1915) a Você e os Seus (2016)

Seminário

    Estudos Comparados de Cinema

Resumo

    O trabalho discute de forma comparativa duas obras cinematográficas: o silencioso Gryozy (1915), do russo Ievgueni Bauer e Você e os Seus (2016), do sul-coreano Hong Sang-Soo. Ambas tratam da obsessão e sublimação de um homem que, após perder a mulher amada, reencontra outra que é a imagem e semelhança. Apoiando-se numa discussão teórica que mistura ontologia técnica e mundos possíveis, a análise aponta que a diferença entre os filmes obedece ao estatuto da imagem em dois séculos diferentes.

Resumo expandido

    Polêmico na recepção crítica e bem sucedido comercialmente, o cineasta Yevgueni Bauer foi um dos mais célebres nomes do cinema na Rússia imperial. Era de estirpe dos grandes meteurs-en-scène europeus dos anos 1910s (como Franz Hofer, August Blum, Victor Sjostrom ou Giovanni Pastrone) que representaram um caminho alternativo à ótica monolítica que resumiu a década ao estilo de Griffith; cineastas de espírito decadentista e assombrados com o fenômeno da mecanização e velocidade da virada do século XX, que incorporavam fortemente a tradição das artes plásticas e teatrais – concebendo o cinema como uma ‘arte total’ – e que investiam no plano tableaux-vivant, na longa duração do quadro respeitando e enaltecendo a performance do ator, nos jogos de misé-en-place, nos efeitos de luzes, mobílias, etc., todos abrasados por uma alma decorativista.
    A estória de Gryozy (1915) é impregnada de fantasmagorias: após a morte da esposa, Serguei vive desolado e recluso até que conhece Tina, uma atriz que é a imagem e semelhança da falecida e que lhe desperta uma enorme obsessão. O homem veste ela com as roupas e jóias da ex-mulher e tenta moldá-la às características daquela que sobrevive numa lembrança que lhe atormenta, mas a atriz não parece tão interessada em disputar o lugar com a memória idealizada, e começa tanto a reagir de maneira insolente. As núpcias desandam, e o desfecho é trágico. A trama aproveita-se do retrato de melancolia e obsessão para versar sobre o significado da imagem cinematográfica e seu efeito de ‘réplica’ do corpo humano. Esta mesma dinâmica narrativa que tematiza ‘imagem perdida / imagem reconquistada’ reaparece em uma série de filmes ao longo da história, costumeiramente retratando homens de espírito pigmaleônico que ficam obcecados em vestir mulheres para que se assemelhem a outras do passado. É uma forma do cinema autoreferenciar sua própria ontologia, o “registro narratológico das condições técnicas do meio” (KITTLER, 2017, p. 200).
    Um século depois, o cineasta sul-coreano Hong Sang-soo retoma o modelo para discutir o estatuto da imagem e sua relação com a ‘cópia’ ou simulacro no século XXI, numa época onde a técnica de produção de imagens majoritariamente tornou-se digital. Em Você e Os Seus (2016), um homem é abandonado por sua namorada somente para encontrar outra igual a ela. Mas o longa-metragem de Sang-Soo multiplica os más-entendidos. A segunda mulher é também confundida por um outro homem que ela conhece, que pensa que ela é uma terceira. Todas sempre desmentem os homens que pensam saber dizer quem cada uma delas é e, a certa altura, nós espectadores também temos uma enorme dificuldade em distinguir os personagens que são encarnados pela mesma atriz. O embaralhamento só faz algum sentido quando começamos a perceber quais roupas elas estão usando. Também encenado em tableaux-vivants, só que muito mais despojados que os de Bauer, o estilo do cineasta sul-coreano nos faz indagar sobre como, no intervalo entre dois registros, reconhecemos uma continuidade de personagens, objetos e situações que mantêm coesa uma narrativa em nossa memória.
    A pesquisa realiza uma analise comparativa entre estes dois filmes, que tematizam a ambígua relação do binômio ‘original-cópia’ através da obsessão pigmaleônica masculina, associando-os a uma certa ontologia das formas e técnicas de produção de imagem de suas respectivas épocas. Para realizar este segundo propósito, recorremos, no primeiro caso, à descrição que Kittler empreende das tecnologias de reprodução mecânica do século XIX, e no segundo, às ferramentas semânticas da teoria dos mundos possíveis, que advoga “a tese da pluralidade de mundos” onde “o nosso é apenas um dentre muitos outros” (LEWIS, 2001, p.2)

Bibliografia

    DEBLASIO, Alyssa. “Choreographing Space, Time and Dikovinki in the Films of Evgenii Bauer” em The Russian Review, No. 4 (2007)

    DOLEZEL, Lubomir. Heterocosmica: Fiction and Possible Worlds. EUA, Baltimore: The John Hopkins University Press, 1998.

    DOMINGUEZ, Juan Manuel. El Director Desnudado por sus Pretendentes: El Cine de Hong Sangsoo. Catálogo do BAFICI, 2015

    ECO, Umberto. The Role of The Reader – Explorations in the Semiotics of Text. Bloomington: Indiana University Press, 1979

    KITTLER, Friedrich. A Verdade do Mundo Técnico. Contraponto, 2017

    LEWIS, David. K. On The Plurality of Worlds. Oxford: Wiley-Blackwell, 2001.

    OLIVEIRA Jr., Luiz Carlos. Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno. Tese apresentada à ECA-USP, 2015.

    RYAN, Marie Laure. Possible Worlds, Artificial Intelligence, and Narrative Theory. Bloomington: Indiana University Press.

    TSIVIAN, Yuri. Early Cinema in Russia and Its Cultural Reception. Routledge, 1991