Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Ines Dieuzeide Santos Souza (UFC)

Minicurrículo

    Maria Ines Dieuzeide é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, onde desenvolveu tese sobre as formas políticas do cinema de Elia Suleiman. Pesquisa cinema, exílio e outros deslocamentos da e na imagem.

Ficha do Trabalho

Título

    A cena, o tempo e os arquivos: ver o que está fora da imagem

Seminário

    Cinemas, Comunidades, Territórios: interpelações aos gestos analíticos

Resumo

    Este trabalho elabora primeiras considerações a respeito de três curtas palestinos realizados na última década, e das operações tecidas com as imagens de arquivo. Articulamos os filmes “I signed the petition”, de Mahdi Fleifel (2018), “Seu pai nasceu com 100 anos, assim como a Nakba”, de Razan AlSalah (2018), e “The flowers stand silently, witnessing”, de Theo Panagopoulos (2024), para pensar como as imagens em tela nos provocam a ver algo que está fora, em outro tempo, mas ainda na mesma cena.

Resumo expandido

    Na tela cinza dos créditos iniciais, escutamos o toque do telefone que espera ser atendido. O plano cinza dá lugar aos fotogramas iniciais de uma película de pequeno formato, ainda meio queimados, até que a imagem de uma janela, filmada desde o interior, se forme na tela. É uma imagem distante da resolução digital dos 4k ou 8k prevalecentes hoje: ao invés disso, os grãos da película em evidência, nos levando a outro tempo. O telefone é atendido e acompanharemos, ao longo de todo o curta, um diálogo entre Mahdi Fleifel, o diretor de “I signed the petition” (2018), e um amigo, debatendo se vale a pena ou não assinar uma petição para que o Radiohead não faça um show em Tel Aviv, parte da campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel. Esse diálogo se passa todo em voz over, enquanto vemos imagens desse apartamento povoado apenas por objetos, livros, fotografias. Por quatro vezes saímos dali: imagens cinzas, lavadas, do filme “Sands of sorrow” (1950) nos levam a campos de refugiados na Faixa de Gaza, tomadas logo depois da Nakba; imagens pixeladas vão a protestos noturnos contra a ocupação da Palestina e depois trazem fragmentos de gravações que olham para a própria câmera digital; uma câmera na mão percorre um beco escuro em algum lugar não identificado. Essas imagens, que dão a ver mais sua própria materialidade que uma informação objetiva, confundem tempos e espaços que atravessam a questão palestina, corporificada nessa voz que indaga seus próprios gestos de luta.
    Em “Seu pai nasceu com 100 anos, assim como a Nakba” (2018), Razan AlSalah nos faz saltar, com ela e o boneco do Google Street View, em um cruzamento na cidade de Haifa. Vamos percorrer aquelas ruas por meio dessas imagens e suas falhas, atravessadas por fotografias antigas que se sobrepõem ao arquivo da grande corporação, como fantasmas, e tornam “manifesto o que ali antes permanecia soterrado, forçando um choque de tempos e mundos que desestabiliza a suposta neutralidade da imagem contemporânea, desnaturalizando o aparato de poder que a produziu” (Italiano, 2024: 50). De novo, só temos uma voz over, da própria realizadora, que encena uma possibilidade de retorno da sua avó ao território ocupado. Essa voz sem corpo, sem idade, interage com as imagens do computador, indagando-as em busca de seu filho, o pai da diretora.
    Por fim, nos deparamos com um imenso campo florido, as cores roxas se destacando sobre o verde das plantas. Uma cartela nos informa que são imagens das décadas de 1930 e 40, feitas por um missionário escocês na Palestina, quando esta era uma colônia britânica (a Nakba nasceu com 100 anos). São os primeiros registros em cores da região de que se tem notícia. Em “The flowers stand silently, witnessing”, de Theo Panagopoulos (2024), não haverá narração, apenas textos em cartelas que pontuam as imagens com as descobertas do diretor. Uma família, com traços e vestimentas europeias, passeia pelos campos. Quando encontramos, no fundo, algumas pessoas trabalhando na terra, a imagem se congela e tenta uma aproximação, mas a ampliação não permite nitidez. O procedimento se repete: congelamento, aproximação, recorte, repetição, falta de nitidez. Uma cartela nos diz que dos 45 minutos de imagens recuperadas, apenas 2 minutos e 13 segundos mostram árabes palestinos. Nos fotogramas congelados, a deterioração da película é evidente. As palavras sobre a tela nos lembram: “essas imagens de flores escondiam violência na beleza […] essas imagens de flores nos levaram até hoje”.
    Ao colocar esses filmes lado a lado, nos interessa pensar como o uso dos arquivos elabora a complexa relação da Palestina com o tempo: a história de fundação do Estado de Israel nega a própria presença dos palestinos no local, e propaga uma espécie de “amnésia histórica” que postula que este passado sequer existiu, tal como discute Judith Butler (2017). Queremos pensar, com os filmes, como as imagens em tela nos provocam a ver algo que está fora, em outro tempo, ainda na mesma cena.

Bibliografia

    AZOULAY, A. A.. História potencial: desaprender o imperialismo. São Paulo: Ubu, 2024.
    BUTLER, J. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2017.
    ITALIANO, C. Lá, onde você não está: experimentação e poéticas de hackeamento nos filmes de Razan AlSalah. In: BAMBIRRA, Analu et al (org.). 4ª Mostra de cinema árabe feminino [livro eletrônico]. Belo Horizonte, MG: Partisane Filmes, 2024. p. 50-57.
    SAID, Edward. Preface. In: DABASHI, Hamid (Ed.). Dreams of a Nation. Nova York: Verso, 2006. p. 1-5.