Ficha do Proponente
Proponente
- Carla Italiano (UFMG)
Minicurrículo
- Doutora em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG. Nas publicações, foi co-organizadora do dossiê “Cinema e Escritas de Si” da Revista Devires – Cinema e Humanidades. Como curadora, integra a equipe dos festivais Olhar de Cinema de Curitiba, FENDA (Festival Experimental de Artes Fílmicas), e forumdoc.bh (Festival do Filme Documentário e Etnográfico de BH). Foi curadora de diversas mostras temáticas, incluindo Mulheres Mágicas – Reinvenções da Bruxa no Cinema, entre outras.
Ficha do Trabalho
Título
- Eu como outras, outras como eu: comunidades sapatão nos vídeos de Cheryl Dunye
Seminário
- Tenda Cuir
Resumo
- A proposta é analisar as formas de elaborar comunidades sapatão nos trabalhos iniciais em vídeo da estadunidense Cheryl Dunye. Olhando em particular para She Don’t Fade (1993) e The Potluck and the Passion (1993), abordaremos como eles criam imagens contra o apagamento negro e de dissidências de gênero, enquanto deslizam entre as esferas de pessoal e coletivo, encenação e “real”. A comunicação se vale da metodologia de uma curadoria de filmes como caminho de tensionamento e expansão.
Resumo expandido
- Primeiro ano da década de 1990, Costa Leste dos Estados Unidos. Em meio aos videoclipes da MTV, a queda do muro de Berlim e as mudanças radicais de paradigma nas artes e humanidades, uma jovem de vinte e poucos anos explora as possibilidades de uma câmera de vídeo. Nascida na Libéria e tendo crescido na Filadélfia, Cheryl Dunye se tornaria um dos principais nomes do cinema e vídeo queer pós 1990. Seu trabalho confere uma centralidade precursora a um estar no mundo enquanto mulher preta e sapatão, entendendo-as como dimensões indissociáveis de sua vida-obra, o que se estende para uma comunidade lésbica construída filmicamente. Seus cinco vídeos iniciais, realizados entre 1991 e 1993 em ambientes domésticos, com baixo orçamento e seu grupo de amizades, partem de experiências pessoais investidas da chave do humor, posicionando o corpo da diretora na cena fabulada. Eles enfrentam a dialética da “in/visibilidade lésbica no cinema”, com sua “latência a cada instante pronta para ser decodificada” (Brandão; Sousa, 2019, p. 280), e criam imagens contra o apagamento negro e de dissidências de gênero, enquanto desfazem os limites usuais entre encenação e vida “real”.
Esses vídeos anunciam caminhos que seriam aperfeiçoados no seu longa inicial, o revolucionário The Watermelon Woman (1996). Por ela denominados Dunyementaries, seus curtas sugerem não só um jogo autoconsciente entre ficção e documentário, mas a singularidade desse gesto que carrega um nome próprio. O interesse está em dois curtas, com uma carga maior de ficcionalização: She Don’t Fade (1993), que explora as aventuras amorosas de Shae, interpretada pela realizadora, e seu círculo social, de modo a evidenciar o sapabonde que a acompanha – tanto em cena quanto na equipe de produção. O outro curta é The Potluck and the Passion (1993), voltado para as dinâmicas de poder raciais, de sexualidade e classe em um grupo de amigos queer, desviando-se do corpo da diretora e focando nos desencontros entre essas personagens.
Enquanto evidencia as camadas de opacidade que sustentam a elaboração do “eu” nesses trabalhos, Dunye dá centralidade às estratégias de construção de comunidades lésbicas, no cinema e fora dele. Esses trabalhos endereçam, sobretudo, as tensões internas e o caráter maleável das relações que permitem a constituição de um terreno comum a ser partilhado, levando isso para o debate em grupo, dentro dos filmes. Ideias de coletividade que são tão temporárias quanto profundamente enraizadas, excludentes e acolhedoras, frente a ameaças sistêmicas e os esforços para garantir continuidade. Nas palavras de Audre Lorde, eles estão “olhando pra dentro e pra fora / um mesmo olho antes-depois / buscando um agora que possa parir / futuros” (Lorde, 2023, p. 66).
A proposta desta comunicação é ser um depoimento a Cheryl Dunye. Não exatamente à diretora e roteirista de quase sessenta anos que hoje mora em Berkeley, na outra costa do país, e que segue provocando. Mas às Cheryls que vemos em tela e sentimos detrás desses vídeos caseiros. Personagens que se refratam nas camadas de artifício sobrepostas nesses filmes, cientes de que só um exercício de (auto) fabulação crítica (Hartman, 2022) é capaz de desfazer o nível de apagamento a que essas vidas foram sujeitas. Nisso, uma percepção cuir de temporalidade se mostra fundamental. A ideia aqui é esmiuçar os procedimentos a partir dos quais esses filmes criam comunidades lésbicas e com quais implicações. A metodologia para concretizar tal busca será pela via de uma curadoria de imagens, tomando como inspiração os processos curatoriais que venho desenvolvendo há anos junto aos cinemas de mulheres. Mobilizar outros filmes e autorias, de outras épocas e contextos, especialmente do Sul Global, para que se aliem a estes e os tensionem, de modo a revelar outros caminhos de reflexão.
Bibliografia
- BRANDÃO, Alessandra; SOUSA, Ramayana Lira. A in/visibilidade lésbica no cinema. In: HOLANDA, K. (org.). Mulheres de Cinema. RJ: Numa Editora, 2019.
LORDE, Audre. Ladainha pela sobrevivência. In: PRATES, Lubi (org.). Você lembrará seus nomes – Antologia de poetas negras dos Estados Unidos do século XX. RJ: Bazar do tempo, 2023.
HARTMAN, Saidiya. Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. SP: Fósforo, 2022.
ITALIANO, Carla A. A. Sou sujeito/estou sujeita: formas de autoinscrição no cinema experimental de mulheres (EUA, 1990-1993). Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (266f). 2024.
WALLENBERG, Louise. “O New Queer Cinema negro”. In: MURARI, L.; NAGIME, M. (orgs.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. SP: Caixa Cultural, 2015.