Ficha do Proponente
Proponente
- Karen Barros da Fonseca (PUC-Rio)
Minicurrículo
- Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, sob orientação de Luiz Camillo Osorio, investiga a relação entre cinema, política e modernidade no contexto da Revolução Moçambicana, em pesquisa financiada pela CAPES. É mestre no mesmo programa, com a dissertação “Godard em Moçambique: Projeto Fantasma, Imagens Sobreviventes”. Graduada em cinema pela UFF, trabalha no audiovisual como roteirista, diretora, pesquisadora, montadora e curadora.
Ficha do Trabalho
Título
- Plantar nas estrelas, de Geraldo Sarno: um arquivo da utopia moçambicana
Seminário
- Arquivo e contra-arquivo: práticas, métodos e análises de imagens
Resumo
- Em 1979, Geraldo Sarno vai à Moçambique e realiza o curta Plantar nas Estrelas, registro da visita de um grupo de funcionários do governo à região do Xicumbane, onde planejava-se a implementação de uma aldeia comunal, um dos pilares da política da FRELIMO na pós-independência. Entre imagens documentais e poesia revolucionária, o filme materializa a utopia da nova nação, propondo a construção de uma nova história. O que dizem hoje essas imagens de um futuro imaginado no passado?
Resumo expandido
- Plantar nas Estrelas é o título de um poema do moçambicano Marcelino Santos, o Kalungano, que dá nome ao curta-metragem realizado pelo brasileiro Geraldo Sarno em Moçambique, em 1979. O documentarista da geração do Cinema Novo vai ao país a convite de Ruy Guerra e do Instituto Nacional de Cinema (INC), num movimento de solidariedade socialista (Gray, 2016) que levou cineastas de diversas partes do mundo a filmar em Moçambique, interessados nos rumos da revolução anticolonial e no aparato estatal que o governo da FRELIMO montava para a atividade cinematográfica.
Quando Coelho (2019) propõe a ideia de um Roteiro da Libertação para caracterizar a Revolução Moçambicana é possível identificar a centralidade do cinema nesse roteiro, na interseção entre os filmes e a cronologia histórica da descolonização e da revolução. A constituição do Estado-nação passava então pela construção de uma narrativa própria do passado recente, e para isso usava de registros cinematográficos realizados desde os campos de batalha da FRELIMO até a chegada ao poder e as atividades de estruturação do governo, comprovando “a claríssima noção da importância da documentação” (Schefer, 2020, p.65) para o partido.
Diversos filmes produzidos em Moçambique neste período recorrem a imagens de arquivo, tanto as produzidas no espectro anti-colonial quanto às do período colonial, deslocadas epistemologicamente em seu re-uso cinematográfico. Plantar nas Estrelas, no entanto, só tem imagens atuais. Sarno acompanha a visita de um grupo de funcionários à vila Chicumbane, onde planejava-se a implementação de uma aldeia comunal, o modelo de produção agrícola defendido pela FRELIMO. O filme traz registros do cotidiano da vila, como o trabalho das mulheres no campo, a escola local para as crianças e a alfabetização de adultos, uma reunião entre a população e os funcionários do governo, um coral de crianças em seu dialeto, encerrando com uma projeção ao ar livre para olhos que provavelmente viam uma tela pela primeira vez. Vistos hoje, esses registros mostram-se emblemáticos do projeto de estruturação político-cultural da FRELIMO, tais como a superação do analfabetismo e a unificação nacional a partir da adoção da língua portuguesa; a modernização do campo; a propagação pedagógica dos ideais socialistas pelas assembleias populares; e a consolidação da imagem do presidente Samora Machel através da produção audiovisual. À mesma época, o país começava a viver a distopia de uma guerra civil que vai durar duas décadas e onde a manutenção no poder torna-se mais importante do que qualquer procura estética independente. O filme é, portanto, uma projeção de futuro, a materialização de uma utopia de país que nunca se concretizou.
Mesmo assim, o filme não consta de importantes levantamentos sobre o cinema moçambicano, o que aponta para o fato de que o filme não deve ter tido exibição pública em Moçambique. Seu recente restauro, por ocasião de uma mostra retrospectiva da obra de Sarno, mostra que os negativos vieram para o Brasil junto com o realizador. Com isso, a circulação do filme passou ao largo dos mecanismos do estado pós-colonial moçambicano – onde “persistem, malgrado a vontade de deslocação epistemológica e de reconfiguração das estruturas de poder, os mecanismos regulatórios que regiam as instituições arquivísticas durante o período colonial” (Schefer, 2020, p.68). Não era, portanto, um filme de encomenda, instrumentalizado como dispositivo ideológico de propaganda que censurou e invisibilizou tantos títulos produzidos em Moçambique em nome do consenso histórico. Em suas imagens e sons, há possibilidade de reflexão estético-política livre e espaço para a crítica e o dissenso. Nesta comunicação, o filme Plantar na estrelas é analisado então como uma ferramenta para “quebrar a matriz da história” (Azoulay, 2024), buscando em suas imagens a “história potencial” que o partido que chegou ao poder de forma revolucionária, parece perder quando permanece por 5 décadas no poder.
Bibliografia
- AZOULAY, A. A. História potencial: desaprender o imperialismo. Tradução: Célia
Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora, 2024.
COELHO, J. P. B. Política e história contemporânea em Moçambique: dez notas
epistemológicas. Revista de História (São Paulo), p. a07318, 9 dez. 2019.
CONVENTS, G. Os moçambicanos perante o cinema e o audiovisual – uma história
político-cultural do Moçambique colonial até à República de Moçambique (1896-2010). Maputo: CP – Conteúdos e Publicações, 2011.
GRAY, R. Já ouviu falar de internacionalismo? As amizades socialistas do governo
moçambicano. Em: MONTEIRO, L. R. (Ed.). África(s): Cinema e Revolução. São Paulo:
Caixa Cultural, 2016.
GRAY, R. Cinemas of the Mozambican Revolution: Anti-Colonialism, Independence
and Internationalism in Filmmaking, 1968-1991. Suffolk: James Currey, 2020.
SCHEFER, Raquel. Mal de arquivo. Observatorio (OBS*), [s. l.], n. número especial, p. 52–72, 2020. Accepted: 2021-01-25T23:35:09Z. ISSN 1646-5954. DOI 10.15847/obsOBS0001816.