Ficha do Proponente
Proponente
- Christiane Matos Batista (FEUSP)
Minicurrículo
- Christiane Matos Batista é bacharel em Comunicação Social – Jornalismo (UFS) e Publicidade & Propaganda (Unit-SE) -, licenciada em Pedagogia (Feusp), pós-graduada em Cinema (Belas Artes) e mestranda em Educação, Linguagem e Psicologia (Feusp), com pesquisa sobre memória e transmissão simbólica a partir do cinema de Eduardo Coutinho.
Ficha do Trabalho
Título
- Coutinho por Calligaris: o que apontam as costuras, os nós e as emendas no filme O fio da memória?
Eixo Temático
- ET 4 – HISTÓRIA E POLÍTICA NO CINEMA E AUDIOVISUAL DAS AMÉRICAS LATINAS E DOS BRASIS
Resumo
- A partir de reflexões sobre os modos como a escravidão organizou estruturalmente a sociedade brasileira, este trabalho propõe um diálogo entre o filme O fio da memória, do cineasta Eduardo Coutinho, e o livro Hello, Brasil!, do psicanalista e escritor Contardo Calligaris.
Resumo expandido
- Lançado em 1991, O fio da memória – segundo longa documental do diretor de Cabra Marcado para Morrer -, é fruto do cruzamento entre elementos da história social e situações vividas pelos personagens do filme. O projeto foi idealizado pela Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro (Funarj), que convidou Coutinho para a realização de um documentário sobre o centenário da abolição da escravatura no Brasil. O trabalho de tecitura de memórias se deu por meio da coleta de depoimentos, do registro de situações que marcaram o ano de 1988 e de visitas ao nosso passado e suas reminiscências, com ênfase nos papéis da cultura e da religiosidade de origem afro-brasileira enquanto formas de combate à escravidão (FRY, 2018, p. 28).
No mesmo ano do lançamento do filme, Contardo Calligaris publicou Hello, Brasil!, onde compartilha com os leitores algumas das suas impressões iniciais acerca dos modos de viver e de pensar cultivados no país. O autor recorre ao nosso passado mais remoto para compreender, por exemplo, nossos ideais em torno da infância, da educação, das relações de consumo, da marginalidade e da criminalidade etc. Suas reflexões têm como ponto de partida o estabelecimento por aqui de duas figuras centrais: o colonizador e o colono.
Não está entre os anseios do colonizador a criação de uma nação, ou seja, o estabelecimento de uma lei comum a todos, a ele interessa apenas a exploração do lugar conquistado até o seu esgotamento. Numa perspectiva psicanalítica, o colonizador seria “aquele que veio impor a sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo que não o corpo materno) e exercê-la longe do pai” (CALLIGARIS, 2021, p. 50).
Para o colono, prevalece o sentimento de que, em sua nação de origem, lhe foi negada a possibilidade de filiação simbólica. Ao migrar para o Brasil, ele busca reconhecimento, a força de uma lei e a herança de um nome que lhe atribua significação. O colono seria “quem, vindo para o Brasil, viajou para outra língua, abandonado a sua língua materna. […] Procura aqui, em outra língua, um novo pai que saiba interditar, colocar limites, e que talvez o reconheça como filho e cidadão” (Ibid., p. 53-54). É importante ressaltar que, segundo o autor, colonizador e colono são posições subjetivas a partir das quais todos nós, brasileiros, falamos. As duas figuras, portanto, coexistem em cada um de nós.
Além das duas posições citadas, Calligaris aponta a presença do escravo no discurso brasileiro como um fantasma a pairar entre nós. Tanto os colonos como os africanos trazidos à força para o Brasil conheceram a escravidão e “ambos pedem uma cidadania que dê um fim, não tanto a uma escravatura já acabada, mas ao corpo escravo como horizonte fantasmático da relação com um pai que desconheceu os nomes e quis os corpos” (Ibid., p. 64).
Em O fio da memória, existe um trabalho de revisão, de reconhecimento e de valorização da cultura negra em toda a sua abrangência e capacidade de penetração, sem deixar, contudo, de reafirmar o horizonte fantasmático reservado aos descendentes dos escravizados descrito por Calligaris. Como o livro, o filme não é condescendente com a história do país. Ele aponta algumas das nossas contradições e dá testemunho das diferentes formas de violência contra os corpos negros aqui praticadas.
Ao analisarem os processos de colonização no Brasil e os seus efeitos, expondo as estruturas de exploração que seguem operando tanto numa perspectiva sócio-histórica como no campo psíquico, o filme e o livro dialogam com autores como Schwarcz e Starling (2015), Almeida (2019) e Nogueira (2021), que discutem as maneiras pelas quais a escravidão organizou estruturalmente a sociedade brasileira.
Bibliografia
- ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
CALLIGARIS, Contardo. Hello, Brasil! e outros ensaios: psicanálise da estranha civilização brasileira. São Paulo: Fósforo, 2021.
FRY, P. O Banzo de Eduardo Coutinho: Um ensaio sobre O fio da memória. In: O fio da memória visto por Peter Fry, Joel Pizzini; Org. Eliska Altmann, Tatiana Bacal. 1ª Ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018.
Nogueira, Isildinha Baptista. A Cor Do Inconsciente: Significações do Corpo Negro. 1ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2021.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.