Ficha do Proponente
Proponente
- Marilia Almeida Paiva (UFC)
Minicurrículo
- Marília Almeida é cineasta e pesquisadora. Sua pesquisa e criação exploram a relação entre gênero, corpo, imagem e o transtorno dismórfico corporal experimentando a tecnologia e as tensões do próprio corpo na criação de imagens distorcidas por meio da edição digital, audiovisual e analógica. É mestre em Processos de Criação em Arte Contemporânea pelo Programa de Pós-graduação em Artes. Atualmente atua como artista e produtora da Banida Plataforma e do grupo de pesquisa LabArteMídia (ECA-USP).
Ficha do Trabalho
Título
- Corpo lésbico e dismórfico: : uma análise de Espelho Vivo (2022)
Seminário
- Tenda Cuir
Resumo
- Este trabalho analisa a videoarte Espelho Vivo (2022), de Lila Almeida, sob a ótica do corpo lésbico, do transtorno dismórfico corporal e das linguagens da videoarte. A pesquisa discute como a autoimagem e o desejo são tensionados pelo olhar heteronormativo, explorando a câmera como espelho e dispositivo de libertação. O aporte teórico adotado transita entre Judith Butler (2024), Laura Mulvey (1983), Denise Bernuzzi (2014), Arlindo Machado (1995), Philippe Dubois (2004), entre outras/os/es.
Resumo expandido
- O que pode um corpo lésbico, amórfico, disfórico, antipadrão, disruptivo? Nossos corpos são moldados dentro de uma norma patriarcal e heteronormativa, da estética ao modo de existir. Se a “beleza rima com felicidade e saúde” (Sant’anna, 2014, p. 83), que beleza é essa? A estética normativa e a busca pelo corpo ideal são dispositivos de controle que confinam corpos femininos. Desde cedo, aprendemos a “construir o corpo, conservar a forma, modelar sua aparência” (Le Breton, 1999, p. 30). Mas a quem essas normas interessam? Como o erotismo e o desejo se manifestam em um corpo lésbico, que escapa à sentença de uma sociedade falocêntrica?
Se a “mulher existe na cultura patriarcal como o significante do outro masculino” (Mulvey, 1983, p. 438), como escapar da “heterosexualização do desejo” (Butler, 2024, p. 44)? Vivemos no “show do eu … [onde] os selfies têm matado mais que ataques de tubarões” (Sibilia, 2008, p. 22) e a autoimagem é incessantemente fabricada por dispositivos móveis, intensificando o transtorno dismórfico corporal. Ou seja, vivemos numa cultura da comparação que nos confronta com corpos normativos.
Esta análise parte da videoarte Espelho Vivo (2022), de Lila Almeida, artista sapatão, para discutir a relação entre transtorno de imagem e descoberta da sensualidade. Diagnosticada com transtorno dismórfico corporal, Lila se filma dançando diante de um espelho com um celular, que se torna parte da mise-en-scène. O ato de filmar-se é um gesto de afirmação: o corpo que performa, que seduz, que se transforma em discurso. Refletindo uma realidade reconstruída no enquadramento da câmera, “transforma o corpo-objeto em corpo-texto” (Jeudy, 2002, p. 84). A escolha do celular como meio de produção, subvertendo expectativas sobre a complexidade técnica na videoarte, insere-se na lógica defendida por Arlindo Machado em A Arte do Vídeo (1995) e Máquina e Imaginário (2001). Sua portabilidade permite liberdade de movimento, mas sua aparente precariedade tecnológica carrega um potencial subversivo. Trata-se da “ força proveniente do fraco” (Dubois, 2004, p. 74). Embora a tecnologia empregada no vídeo seja, em comparação ao cinema, considerada de qualidade inferior, é nessa aparente fraqueza tecnológica que reside o potencial distintivo do dispositivo. A montagem em Espelho Vivo (2022) rompe com a linearidade tradicional, justapondo imagens entre o visível e o invisível: o corpo real e o corpo distorcido pela mente, o belo e o terrível, o virtual e o corpóreo.
Como filmar um corpo que não se vê com beleza? Como capturar uma imagem que nos olha mais do que se oferece ao olhar? e, por fim, “o que pode uma imagem em movimento?” (Vieira Jr., 2021, p. 16). A dança e a performance emergem como estratégias de libertação e deslocamento (Butler, 2024). Em um mundo que nos ensina que ser feminina é ser magra, branca, hétero e cis, o corpo sapatão resiste:
“Assim como nos descobrimos lésbicas e violamos a lei do matrimônio heterossexual” (Brandão, 2020, p. 126), rompemos também com a estética normativa. Ao se movimentar, filmar e se ver, o corpo dissidente reivindica sua existência. “É o olhar do fotógrafo em um espelho que reflete uma realidade externa” (Krause, 2005, p. 53). Como afirma Butler (2024), não há essência fixa na identidade, mas performatividade. Na arte, a performance tem um potencial particular de perturbação, pois apresenta a mulher real como sujeito falante (Forte, 1990 apud Newman, 2016, p. 4). Em Espelho Vivo (2022), a câmera não apenas capta: ela é um espelho que devolve um olhar sobre si. Um olhar que, em vez de aprisionar, liberta.
Bibliografia
- CORRÊA, P. Auto-experiência: a prática artística como imagem, projeção e intuição de si. Dissertação. UFRGS: Porto Alegre, 2005.
DUBOIS, P. Cinema, Vídeo, Godard. SP: Cosac Naify, 2004.
JEUDY, H. O corpo como objeto de arte. SP: Estação Liberdade, 2002.
BUTLER, J. Problemas de gênero. RJ: Civilização Brasileira, 2024.
LE BRETON, D. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 1999.
MACHADO, A. A Arte do Vídeo. SP: Brasiliense, 1995.
__. Máquina e Imaginário. SP: EDUSP, 2001.
NEWMAN, E. Female Body Image in Contemporary Art. NY: Taylor&Francis, 2016.
SANT’ANNA, D. História da beleza no Brasil. SP: Contexto, 2014.
SOUSA, R.L.; BRANDÃO, A.S. Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v.02,n.03,p.121-137, 2020.
VIEIRA E. Rasuras: 40 anos de vídeo experimental no Espírito Santo. Vitória: Cousa, 2021.
SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.