Ficha do Proponente
Proponente
- Isis Ferreira Gasparini (ECA USP)
Minicurrículo
- Isis Gasparini é artista, mãe, pesquisadora e investiga a noção de Coreografia na Dança, no Cinema e em instalações concebidas para espaços expositivos. Doutoranda em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo. É mestra em Artes pela ECA-USP [2017], e Bacharel em Artes Plásticas [2011] com especialização em Fotografia [2013]. Realizou curadorias, cursos e orientações em projetos que relacionam video e dança.
Ficha do Trabalho
Título
- Uma perspectiva coreográfica no filme Arca Russa: espaço, museu e montagem em movimento
Resumo
- Esta comunicação analisa o filme Arca Russa, de Aleksandr Sokurov, a partir da noção de coreografia. Filmado em plano-sequência no Museu Hermitage, o longa antecipa a montagem para o momento da captação, organizando o tempo narrativo por meio de uma ação contínua. O museu torna-se dispositivo narrativo e cênico, articulado por uma coreografia complexa entre atores e equipe, que conecta espaços e tempos em um fluxo performático.
Resumo expandido
- O filme Arca Russa (2002), dirigido por Aleksandr Sokurov, propõe uma experiência cinematográfica singular ao apresentar-se como um plano-sequência de aproximadamente 96 minutos, filmado inteiramente dentro do Museu Hermitage, em São Petersburgo. Tal escolha estética radical — a exclusão da montagem tradicional — convida à reflexão sobre o papel do corte no cinema e, principalmente, sobre o que ocorre com a montagem quando ela deixa de ser aplicada na pós-produção. Nesse contexto, propomos uma análise a partir de uma perspectiva coreográfica, entendendo a coreografia como uma organização do movimento no espaço e no tempo, operando não apenas com corpos, mas também com olhares, objetos, arquitetura e temporalidades.
Ao prescindir do corte, o filme desloca a montagem para dentro da cena, para o corpo da própria imagem em movimento. A montagem, neste caso, se torna coreográfica: é o deslocamento contínuo da câmera e dos corpos que organiza a progressão narrativa, histórica e sensorial da obra. A ausência de cortes, longe de eliminar a montagem, a reconfigura como uma operação espacial e performativa. A coreografia, nesse sentido, torna-se a estratégia compositiva que organiza as transições entre os espaços, os tempos e os eventos representados.
O Museu Hermitage, espaço de enunciação e cenário do filme, é também protagonista. Mais do que um simples pano de fundo, o museu opera como dispositivo museográfico que concentra, reconfigura e encena a história da Rússia — e do próprio cinema enquanto arte da memória. A câmera flutuante percorre salões, escadarias, corredores e galerias, guiando o espectador em uma deriva espaço-temporal em que o museu é simultaneamente espaço de exibição e coreografia. O Hermitage, com sua opulência arquitetônica e densidade histórica, sustenta a fluidez do plano-sequência, funcionando como estrutura coreográfica que articula o movimento dos corpos e da câmera.
A coreografia em Arca Russa não se limita ao deslocamento dos personagens, mas estende-se à relação entre espectador, câmera e espaço. A figura do narrador-câmera, quase espectral, propõe um olhar subjetivo, deambulante, que não apenas observa, mas participa da cena, constituindo uma experiência imersiva. A montagem-coreografia instaura, assim, um regime de atenção contínua e um modo de espectatorialidade específico, em que a narrativa é vivida mais do que contada. A fluidez do movimento articula fragmentos históricos disjuntos, conectando eventos e épocas por meio de transições coreográficas que substituem as elipses tradicionais da montagem.
Essa abordagem permite também pensar o filme como uma forma de museu em si, não apenas pelo cenário, mas pela maneira como organiza sua temporalidade. Arca Russa constrói uma museografia do tempo, em que a história é exposta em sua simultaneidade e continuidade, tal como uma coreografia que reúne corpos de tempos distintos em um mesmo gesto. A escolha pelo plano-sequência torna o tempo visível e presente, recusando a compressão temporal da montagem tradicional. A montagem, ao invés de recortar e reorganizar o tempo, é vivida em tempo real — ela se encarna no deslocamento coreografado da câmera e dos corpos no espaço.
Concluímos, portanto, que Arca Russa propõe uma reconfiguração da montagem cinematográfica ao incorporá-la como gesto coreográfico. O filme transforma o espaço do museu em espaço coreográfico e o tempo histórico em tempo performado. Ao suspender a montagem tradicional, Sokurov não a abandona, mas a desloca para o interior do plano, fazendo da coreografia o novo regime de montagem. Assim, Arca Russa nos convida a repensar os modos de articulação entre espaço, tempo e movimento no cinema, apontando para uma estética da continuidade que, longe de ser linear, é rizomática, sensorial e profundamente política.
Bibliografia
- AUMONT, Jacques. O olho interminável. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
BORGES, Cristian. O Cinema como Dança: sobre a natureza fluida e intemporal das imagens em movimento. In: Anais do 32° Encontro Anual Da Compós. Campinas: Galoá, 2023.
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EISENSTEIN, S. “Montage and Architecture”. In Glenny, M. e Taylor, R. (orgs). Eisenstein Volume 2: Towards a Theory of Montage. Londres: British Film Institute. 2010.
KAHTALIAN, Matheus. Arca russa, arca de contradições. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 98-110, jun. 2012.
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MACHADO, Alvaro. (Org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002
O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SOKUROV, Alexander. (2002). Entrevista nos extras do DVD: Arca Russa. São Paulo, Versátil.