Ficha do Proponente
Proponente
- Bernard Belisário (UFSB)
Minicurrículo
- Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFSB. Diretor do Centro de Formação em Artes e Comunicação da UFSB. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Poéticas Ameríndias (CNPq). Graduado em Rádio/TV e em Jornalismo, Mestrado e Doutorado em Comunicação Social pela UFMG. Atuou profissionalmente na direção, roteiro, finalização e edição de filmes, vídeos e programas de televisão em Belo Horizonte. Membro do Conselho Gestor da Agência de Iniciativas Cidadãs (MG).
Ficha do Trabalho
Título
- Transformar com as imagens: filmes indígenas e xamanismo
Seminário
- Cinemas, Comunidades, Territórios: interpelações aos gestos analíticos
Resumo
- A partir das mudanças relacionadas à experiência com as imagens técnicas da fotografia e do vídeo nas aldeias, retomamos a hipótese de que, ao fazerem incidir sobre o processo de produção, e sobre os próprios filmes, diferentes olhares advindos da sua comunidade, cineastas e coletivos indígenas de cinema no Brasil acabam por criar as condições para um tipo de tradução capaz de abrir as imagens às intensidades em jogo no próprio xamanismo, do qual inicialmente pretenderam se afastar.
Resumo expandido
- “Alerta aos espectadores aborígenes: este filme pode conter imagens e vozes de pessoas que faleceram”. O letreiro de abertura dos filmes do Coletivo de Cinema Karrabing cumpre com o protocolo estabelecido pela rede nacional de TV australiana ABC como condição para a exibição pública de imagens de pessoas de povos nativos daquele território. A partir de uma comparação com experiências de realização fílmica de cineastas e coletivos indígenas de cinema no Brasil, buscamos identificar traços de como os próprios filmes podem resistir à “governança da diferença” (Povinelli, 2023) em jogo na lógica que parece fundamentar a solução garantida por esse tipo de protocolo.
Em diálogo com a hipótese de uma crítica “xamânica” da economia política das imagens (Brasil, 2016), perceptível em diferentes filmes produzidos a partir das metodologias e dispositivos desenvolvidos no Brasil pelo projeto Vídeo nas Aldeias, pretendemos investigar como essa produção implicou a superação de uma relação problemática anterior, protagonizada por aqueles que olhavam pela primeira vez as imagens técnicas da fotografia e do vídeo, em que se viam registradas em vida pessoas daquelas comunidades que haviam falecido.
O cineasta Xavante Divino Tserewahú certa vez relatou que os padres da missão São José de Sangradouro haviam realizado fotografias de seu avô, nos meses em que viveu junto à missão com seu povo em 1957. Algum tempo depois do seu falecimento, na ocasião da escolha do novo cacique, os padres tentaram mostrar imagens de Tsereptsé para seus parentes, que acabaram se encerrando em suas casas.
“Porque voltou a saudade. Só com a imagem, os Xavante ficaram muito emocionados, choraram como se ele estivesse vivo. Por isso os Xavante não gostavam, antes, de fotos mostradas. Se eu morresse, no tempo dos antigos, meu pai, meus filhos não iriam querer ver minha foto. Para eles eu estaria aparecendo de novo. Também por isso Xavante raspa o cabelo, isso é sinal de esquecer. Enquanto o cabelo cresce, vai esquecendo junto. É por isso que eles não queriam que os padres salesianos levassem mais essas imagens do meu avô. Daí fecharam tudo, as portas” (Tserewahú, s/d).
Dominique Gallois e Vincent Carelli relatam que alguns Wajãpi da aldeia Mariry tomaram uma série de medidas profiláticas diante da desconfiança das imagens exibidas no recém chegado aparelho de televisão, presenteado pelo projeto Vídeo nas Aldeias. “Da mesma maneira como se deu a dessacralização do uso dos nomes próprios e a diminuição das restrições feitas à circulação de fotografias, está se dando a incorporação da TV e do vídeo, de acordo com alterações nas interpretações tradicionais sobre a imagem” (Gallois; Carelli, 1992: 30).
As marcas desse processo de transformação da experiência com as imagens técnicas podem ser percebidas também nas terminologias com que muitos povos denotam, em sua língua nativa, as imagens e a ação de produzi-las. Diego Madi Dias e André Demarchi relatam diferentes inflexões do termo com que os Kayapó designam as imagens técnicas: mekaron – utilizado originalmente para designar acepções do campo do xamanismo, como “alma”, “espírito”, “duplo” (Madi Dias; Demarchi, 2013: 154, nota 9).
Na medida em que se passou a compreender e explorar o funcionamento do aparato técnico nas aldeias, a natureza automática (ótica, química, eletrônica) que regula a produção das imagens, e sobretudo a dimensão técnica que possibilita sua permanência e circulação, transforma-se também a experiência de assisti-las, restando superado o perigo inicial que as vinculava às imagens de natureza xamânica. Entretanto, tendo em vista a dimensão processual e relacional evocada naquilo que recentemente Divino Tserewahú chamou de “desmanchar os filmes” (Tserewahú; Belisário, 2018), e todo o potencial de transformação e abertura às forças de fora que passa a incidir sobre as obras e seus espectadores (Brasil; Belisário, 2016), não estaria aqui um dos princípios em jogo nas imagens próprias ao xamanismo?
Bibliografia
- BRASIL, André. “Ver por meio do invisível: o cinema como tradução xamânica”. Novos estudos CEBRAP, 35 (3), p. 125-146, 2016.
BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. “Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo em filmes indígenas”. Sociologia & Antropologia, 6 (3), p. 601-634, 2016.
GALLOIS, Dominique T.; CARELLI, Vincent. “‘Vídeo nas Aldeias’: a experiência Waiãpi”. Cadernos de Campo, 2 (2), p. 25-36, 1992.
MADI DIAS, Diego; DEMARCHI, André. “A imagem cronicamente imperfeita: o corpo e a câmera entre os Mebêngôkrê-Kayapó”. Espaço Ameríndio, 7 (2), p. 147-171, 2013.
POVINELLI, Elizabeth A. Geontologias: um réquiem para o liberalismo tardio. São Paulo: Ubu Editora, 2023.
TSEREWAHÚ, Divino. Comunicação pessoal. s/d.
TSEREWAHÚ, Divino; BELISÁRIO, Bernard. “Eu, um cineasta”. Devires – Cinema e Humanidades, 15 (1), p. 96-121, 2018.