Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Isadora Libório De Andrade Oliveira (UERJ)

Minicurrículo

    Isadora Libório é bacharel em Ciências Sociais pela UFRJ, mestre em Cinema pela École Normale Supérieure de Lyon e doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UERJ. Em sua trajetória acadêmica, interessa-se pelos diálogos possíveis entre a antropologia e o cinema. No doutorado, estuda a representação de idosos LGBTQIAP+ no cinema ficcional. Seu primeiro filme, “Sigo enquanto espero” (2025), se interroga sobre a relevância do cotidiano e do banal para a etnografia.

Ficha do Trabalho

Título

    O cotidiano como política: reflexões a partir de um filme etnográfico familiar

Resumo

    A comunicação pretende abordar o lugar do cotidiano e do banal no filme etnográfico a partir de discussões sobre o curta-metragem documental “Sigo enquanto espero” (2025), realizado pela antropóloga Isadora Libório, proponente da comunicação. Iremos refletir sobre a potência política das narrativas cotidianas, defendo que mesmo histórias íntimas podem se tornar campo etnográfico, ao revelarem temas universais como envelhecimento, memória e cuidado.

Resumo expandido

    Em seu artigo O Filme Etnográfico, o etnógrafo e cineasta Jean Rouch descreve um senso comum que até hoje ronda o imaginário de antropólogos que se arriscam como realizadores: “Quando os cineastas fazem filmes etnográficos, pode ser que sejam filmes, mas não são etnográficos; e quando etnógrafos fazem filmes, pode ser que sejam etnográficos, mas não são filmes…” (ROUCH, 2015, p. 67). A frase evidencia o receio de que os objetos de interesse e os modos de fazer filmes de cineastas e antropólogos sejam de tal modo incompatíveis que, quando a antropologia vem em primeiro plano, teme-se que o resultado seja um filme maçante, sem apelo estético; e, por outro lado, quando a sétima arte se sobrepõe, teme-se que o filme perca sua relevância teórica, social e antropológica.
    Essas perguntas se tornaram centrais para mim durante a realização de um filme etnográfico sobre meus avós, Marlene e Péricles, casados há 66 anos. A proposta inicial era simples: registrar fragmentos de sua vida cotidiana, seu convívio doméstico, suas histórias partilhadas e silenciosas. No entanto, desde o início, fui atravessada por uma inquietação: seria esse um tema legítimo para a antropologia? A história de um casal comum, sem um marcador social evidente, poderia, ainda assim, suscitar questões antropológicas relevantes?
    Historicamente, a antropologia priorizou o estudo de populações marginalizadas e experiências culturais fronteiriças. Temáticas que, por sua densidade política e social, foram legitimadas como objetos válidos da disciplina. Ao contrário, o cotidiano banal de uma família parece, à primeira vista, insuficiente para provocar grandes questões.
    Mas, ao longo do processo de filmagem, torna-se evidente que essa suposta banalidade está impregnada de temas profundamente políticos: envelhecimento, solidão na terceira idade, demência senil, surdez, cuidado mútuo, o medo da morte, o tempo que passa e aquilo que permanece. O cotidiano, por mais banal que pareça, é tecido de relações de poder, de disputas simbólicas, de afetos atravessados por normatividades e transgressões. E justamente por isso, pode ser campo fértil para o olhar antropológico.
    Esta comunicação, portanto, busca compartilhar trechos do filme e propor uma reflexão sobre a potência política do cotidiano como objeto etnográfico. Para isso, dialogo com uma linhagem de documentários autorreferenciais — como Elena (Petra Costa, 2012); Um passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2001); Travessia, (Safira Moreira, 2017); e Inconfissões (Ana Galizia, 2018) — que, embora centrados em experiências pessoais, são capazes de extrapolar o universo íntimo e familiar para tocar em temas universais como luto, identidade, pertencimento, ancestralidade, memória e arquivo.
    Se, no início, questionei se o documentário sobre meus avós seria “antropológico o suficiente”, ao final da experiência, compreendi que a antropologia também pode se interessar pelas encruzilhadas entre o pessoal e o coletivo, entre o íntimo e o político. Talvez seja justamente nesse espaço híbrido (entre ciência e arte, entre dados e sensibilidade, rigor e beleza) que ela possa se reinventar. Defendo, assim, que o filme etnográfico não precisa, necessariamente, mirar grandes eventos para ser politicamente potente. Ele pode partir do cotidiano, da família, da memória íntima, desde que se proponha a pensar as camadas sociais, simbólicas e afetivas que atravessam essas experiências. Afinal, o pessoal também é político, e o cotidiano, também é campo etnográfico.

Bibliografia

    CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Unesp, 2000
    CHO, Gracie M. Haunting the Korean Diaspora: shame, secrecy, and the forgotten war. Minnesota: University of Minnesota Press, 2008 (Introdução e Cap.1).
    GAMA, Fabiene. A Autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. Anuário Antropológico 45 (2):188-208, 2020.
    MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental. São Paulo, Abril Cultural, 1978
    ROUCH, Jean. O Filme Etnográfico. In. LABAKI, E. (Org.). A Verdade de Cada Um. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
    VELHO, Gilberto. Observando o familiar. Nunes, Edson (org.) A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar. pp.36-46, 1978.
    VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografia: uma alternativa conceitual. Letras de Hoje, Porto.