Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    FERNANDA CAPIBARIBE LEITE (Dra)

Minicurrículo

    Profa. do Departamento de Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco, graduação e pós. Trabalha nas áreas de Fotografia, Comunicação Audiovisual, Estudos de Gênero, Teoria Queer, Estudos Feministas e Anticolonialidade. Líder de projeto de pesquisa no CNPq, intitulado INTERCENA, focado nos discursos visuais e audiovisuais ao enfrentamento das desigualdades de gênero, raça e sexualidade, abordando geografias transfeministas, o feminismo negro e anticolonialidade pelo viés das imagens.

Coautores

    Naywá Moura Carvalho (UFPE)
    Juliana Gleymir Casanova da Silva (UFPE)

Ficha do Trabalho

Título

    São todas Putas: fabulando o eu-nós através do filme Arrenego

Seminário

    Tenda Cuir

Resumo

    A escrita em torno do documentário Arrenego é tecida por um coletivo eu-nós. A partir de diferentes atravessamentos de cada ume das três sujeitas no texto, mobilizamos uma fabulação crítica à ciscolonialidade através do que o filme nos propõe: recriar, na atualidade, o arquivo colonial sobre um suposto Sabá demoníaco de mulheres que se passa em 1758, na cidade de Oeiras-PI. Arrenego borra o arquivo, fabulando as cenas desse episódio histórico, tendo como personagem principal uma travesti.

Resumo expandido

    Esse texto é tecido por um nós, composto por três subjetividades, que se torna também um eu. Nós-eu, interligados pelo atravessamento de Arrenego (2025, 76 min), documentário-fabulação. Cada qual em suas vivências, nos conectamos e nos distanciamos, a partir da interseção entre filme e sujeita. Escrevemos na relação orientadora-orientandes em confluência: três corpas LGBTQIAPN+. Nesse caminho, nos diferenciamos sem nominar a diferença, transfluindo pelas bordas que o filme nos apresenta. No feitiço que Arrenego lança, propomos também “enfeitiçar a língua” (DOS SANTOS, 2023, p.4) nesses escritos. No encontro, vemos essa produção audiovisual como uma contra-narrativa contra-colonial.
    Arrenego parte de escritos na forma de cartas, datados da época do Brasil colônia, que descrevem um suposto Sabá de mulheres, indígenas e negras escravizadas, em 1758, Oeiras, Piauí. É suposto porque o conhecemos apenas pelo arquivo colonial: as cartas do Padre Manuel, que descreve os rituais como pacto sexual com o demônio, e solicita à Coroa Portuguesa providências. Partindo desse registro inquisitorial, o filme escorre pelas brechas recriando a ancestralidade no agora, trazendo corpos do passado, (re)encenados pelas existências de corpos presentes. Dos relatos transcritos de Joana e Custódia, as então hereges do Sabá, o filme atualiza a história com o cotidiano da cidade de hoje.
    Desse histórico, temos apenas vestígios através do arquivo, que conta com o depoimentos das mulheres envolvidas “arrenegando” o poderio colonial e o domínio cristão sobre seus corpos. Arrenego nos devolve o Sabá espiralando o tempo (MARTINS, 2022), dissipando a névoa com o feitiço da fabulação, fílmica e crítica.
    Logo no início, em off, o diretor, Fernando Weller, pergunta: “qual o trecho que você vai ler?” Naywa então responde: “documento um”. E inicia:

    Ela, Cecília, chamava homem e nunca demônio, por respeito a tal homem e desprezo pelo verdadeiro deus. […] Arrenego do batismo e do padre que me batizou. da madrinha e padrinho que me puseram a mão. Arrenego da confissão e dos padres que me confessam. Arrenego da comunhão que recebem e os que comungam. Nem ali creio que esteja o sujeito que dizem ser Deus. Nem eu creio na igreja, e arrenego dela e de todos que estão dentro dela. Arrenego do matrimônio e dos que o fizeram. Arrenego de toda a sua raça; isto é, parentela. Arrenego de todos os santos e de todas as santas, que todas foram putas. (Trecho do filme Arrenego, 2025)

    Esse relato, de Custódia, é lido no filme por Naywa, travesti de Oeiras, que atualiza o Sabá escancarando a demonização de seu corpo pela ciscolonialidade (VERGUEIRO, 2015). Ao tentar recuperar a história da Vênus Negra, Saidyia Hartman (2020) enuncia o vestígio de sua existência como o desastre do encontro com o poder, que deixa rastros insuficientes e encarcera essa Vênus às margens da (des)humanidade. Hartman questiona: como conhecer as estórias de pessoas subalternizadas pelo colonialismo, se a manutenção e reprodução dos arquivos se dá por quem silenciou e aniquilou em nome da “civilização”?

    O arquivo, nesse caso, é uma sentença de morte, um túmulo, uma exibição do corpo violado, um inventário de propriedade, um tratado médico sobre gonorréia, umas poucas linhas sobre a vida de uma prostituta, um asterisco na grande narrativa da História.(HARTMAN, 2020, p. 15)

    A autora propõe a fabulação crítica como um redesenho de vidas para além das histórias de desumanização e demonização. Proposta como método, é um gesto que transborda o arquivo, rearranjando elementos da história, preenchendo seus vazios com o que não foi escrito, mas cantado, gozado, encenado.
    Assim, a trama de Arrenego se estende para pensarmos a própria construção ciscolonial do Brasil e seus atravessamentos em nossas vidas, a partir do que o filme borra: o arquivo, o controle sobre os corpos; antes e agora. Como Bispo dos Santos (2023) compartilha, se o colonialismo é transporte em linha reta, propomos o movimento de começo.

Bibliografia

    DA SILVA, Denise F. A dívida Impagável. São Paulo: Zahar, 2019.
    DOS SANTOS, Antônio Bispo. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Editora UBU / PISEAGRAMA, 2023.
    HARTMAN, Saidyia. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, [S. l.], v. 23, n. 3, p. 12–33, 2020. DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27640. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640. Acesso em: 6 abr. 2025.
    MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: performances do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
    VERGUEIRO, Viviane. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: MESSEDER, Suely; CASTRO, Mary Garcia; MOUTINHO, Laura (Org.). Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 249-270.