Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Rebeca Hertzriken Ferreira (PPGCine UFF)

Minicurrículo

    Rebeca Hertzriken é bacharel em Cinema e Audiovisual na UFF. Desenvolveu sua monografia sobre a trilha musical de La Ciénaga (Lucrecia Martel, 2001), criando cerca de 20 gráficos e ilustrações como ferramenta analítica do filme. Atualmente, é mestranda no PPGCine-UFF e integra o projeto Orla Sem Lixo Transforma (COPPE-UFRJ/Petrobras), atuando na comunicação de dados científicos via redes sociais.

Ficha do Trabalho

Título

    A música como dispositivo contra-hegemônico em La Ciénaga: raça, classe e território na Argentina

Eixo Temático

    ET 4 – HISTÓRIA E POLÍTICA NO CINEMA E AUDIOVISUAL DAS AMÉRICAS LATINAS E DOS BRASIS

Resumo

    Análise da música em La Ciénaga (Lucrecia Martel, 2001) como força que desestabiliza a narrativa hegemônica e suas bases de racialização, classe e colonização. A tensão entre folclore e cumbia organiza dois territórios em disputa: um alinhado à ordem branca e outro, insurgente, associado à presença indígena (DE JONG, 2005). Através de mapas, fluxos e gestos gráficos, a trilha musical é proposta como vetor de bifurcação e territorialização narrativa (HERZOG, 2010).

Resumo expandido

    Este trabalho analisa o filme La Ciénaga (2001), de Lucrecia Martel, como obra que tensiona os alicerces da narrativa histórica argentina. Ambientado num contexto sufocante e marcado pela estagnação social, o filme expõe fissuras na ideia de uma identidade nacional branca, homogênea e eurocentrada. Nesse processo, a música desempenha um papel fundamental, atuando como vetor ativo de elaboração dos territórios — ora interrogando os valores do imaginário hegemônico, ora abrindo brechas por onde emergem vozes, ritmos e presenças de uma narrativa silenciada.

    Desde o século XIX, a historiografia argentina tem operado na construção de um imaginário nacional que apaga as populações indígenas e afrodescendentes, enquanto exalta uma suposta origem europeia como marca de civilização e progresso (DE JONG, 2005). A cultura popular — e em especial a música — funciona como peça estrutural desse apagamento. O folclore argentino, identificado pela estética do gaúcho, surge como símbolo da autenticidade nacional. Outros ritmos, como a cumbia, de origem colombiana e associada às periferias urbanas e a grupos racializados, são marginalizados como expressão popular menor (ALABARCES; SILBA, 2014).

    Partindo dessa tensão, o trabalho analisa a música em La Ciénaga como um dispositivo que bifurca a narrativa (HERZOG, 2010) e a reorganiza em distintas espacialidades. Delineiam-se dois modos de territorialização: um alinhado à narrativa hegemônica e outro que emerge como força dissidente, capaz de desafiar a história dominante. A cumbia acompanha momentos em que a lógica de violência colonial é tensionada, enquanto o folclore atua como vetor de desintegração das possibilidades de fantasia das personagens brancas, culminando na tragédia de Luciano (MEDEIROS; MAIA; HAASE, 2025). No contexto do filme, a música torna-se um elemento-chave na leitura do enredo, ao atravessar cenas emblemáticas de violência e morte.

    Para investigação, este trabalho adota uma abordagem metodológica que articula a análise fílmica à experimentação visual. Ancorado por autores como Michel Chion (1994) e Claudia Gorbman (1987), que pensam o som como operador narrativo e espacial, o artigo explora a trilha musical como uma espécie de cartografia, cujos efeitos são convertidos em mapas, fluxos e gestos visuais (HERTZRIKEN, 2022). Essa proposta dialoga com a reflexão de Opolski e Carreiro (2022), ao reconhecer que processos de visualização gráfica podem operar como importante estratégia analítica para tornar visíveis as dimensões do filme que extrapolam os limites do quadro cinematográfico.

    Ao lado disso, a pesquisa articula-se a estudos sobre identidade nacional e política sonora na Argentina, observando como o folclore e a cumbia atuam como marcadores territoriais que produzem narrativas concorrentes sobre pertencimento e memória (YUDI, 2009). Nesse contexto, o próprio cenário de realização de La Ciénaga adquire relevância: filmado em Salta — província no extremo norte argentino, na fronteira com a Bolívia — o filme se inscreve em um território historicamente excluído da construção da identidade nacional. A região, marcada por forte diversidade étnico-racial, reforça as tensões abordadas no filme e sublinha a persistente marginalização dos povos indígenas desde o processo de colonização (DALSH; VARAS, 2007).

    Mais do que acompanhar a ação ou reforçar atmosferas, a música em La Ciénaga participa ativamente da disputa por sentidos de pertencimento e identidade. Ao analisar os modos como o folclore e a cumbia organizam o espaço narrativo, o trabalho propõe revelar a trilha musical como gesto político capaz de enfatizar camadas históricas e sociais ocultas na paisagem sonora (SCHAFER, 2001). Nesse movimento, a música é tomada como vetor de territorialização e afirma-se como força fabulatória que molda os ambientes, organiza os corpos e conduz a narrativa para além da lógica hegemônica.

Bibliografia

    ALABARCES, P.; SILBA, M. “Las manos de todos los negros, arriba”. Cult. Repres. Soc., v. 8, n. 16, 2014.
    BARRENHA, N. C. A experiência do cinema de Lucrecia Martel. SP: Alameda, 2013.
    CHION, M. Audio-vision: sound on screen. NY: Columbia Univ. Press, 1994.
    DE JONG, I. Entre indios e inmigrantes. Rev. Indias, v. 65, n. 234, 2005.
    GORBMAN, C. Unheard melodies: narrative film music. Indiana Univ. Press, 1987.
    HERZOG, A. Dreams of difference, songs of the same. Univ. Minnesota Press, 2010.
    HERTZRIKEN, R. Território e fabulação: uma análise sobre a trilha musical de La Ciénaga. Monografia (Grad. Cinema e Audiovisual) – UFF, Niterói, 2022.
    MEDEIROS, R. F.; MAIA, G.; HAASE, D. M. Rapsódia norteña. Rev. Famecos, v. 32, 2025.
    OPOLSKI, D.; CARREIRO, R. O espectro do som como ferramenta de análise fílmica. PÓS, v. 12, n. 24, p. 388–414, 2022..
    SCHAFER, R. M. A afinação do mundo. SP: UNESP, 2001.
    YUDI, R. J. Reflexiones sobre la etnicidad en Salta. ALAS, Buenos Aires, 2009.