Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Tenille Bezerra (UFA)

Minicurrículo

    Tenille Bezerra é cineasta, pesquisadora e poeta. Autora dos livros “rumor”e “Alíberes, aves e plumas”. Atualmente desenvolve pesquisa de doutoramento na Universidade Federal da Bahia, no Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade.

Ficha do Trabalho

Título

    Imargear o mundo: vislumbres de um cinema cosmopoético.

Resumo

    O presente estudo propõe desdobrar a expressão cinematográfica a partir do universo estético afro-indígena, notadamente, o conjunto simbólico das cantigas dos caboclos. Situadas em um campo limiar as imagens mobilizadas por esse conjunto poético operam passagens entre distintas perspectivas, imbricando visões, sujeitos e possibilidades – instaurando uma ética do acontecimento cuja energia estética constitui o fundamento de uma cosmopoética, forma de supravivência ecologicamente radical.

Resumo expandido

    O presente estudo propõe desdobramentos para o campo da expressão cinematográfica a partir de um mergulho no universo estético afro-indígena, notadamente, o conjunto simbólico das cantigas dos caboclos. Entre presenças, ausências e silêncios encontramos os cantos: aspectos não visíveis que compõem estados de enunciação das imagens. Flechas atiradas, as cantigas deslocam as imagens para projetá-las em um outros campo de vibração, assim enunciam fissuras na semântica colonial, reinventam a vida como potência. Modo de acesso às mais distantes alteridades, forças ativas de conexão entre os planos perceptivo e cosmológico, as imagens atuam como vias de manutenção da ancestralidade, através delas miramos o mais amplo sentido da existência. Abrir as imagens aos campos sensíveis e não necessariamente visíveis que as atravessam, percorrer esses estados se deixando envolver pela percepção de um mundo circundante – a esse exercício nomeamos imargear. Dispositivo de renúncia ao engendramento do “Uno”, imargear uma face do mundo supõe entrar em diálogo com os estados ativos da imagem quando estas nos interpelam.

    Nessa jornada nos guiam os pressupostos ontológicos, poéticos e existenciais assentados nos modos de existência dos caboclos. Situadas em um campo limiar, descontínuo, as imagens mobilizadas pelo conjunto poético dos caboclos operam passagens entre distintas perspectivas, imbricando visões, sujeitos e possibilidades – instaurando uma ética do acontecimento, do encontro, cuja energia estética e reflexos epistêmicos constituem o fundamento de uma expressão de supravivência ecologicamente radical. Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino falam em uma “dinâmica dos cacos”, Edouard Glissant fala em uma “poética dos rastros”, “práticas de desvio”, todas essas compreensões nos são caras para pensarmos as formas de enunciação que surgem como engendramento de relação entre as imagens. Afirmar a dignidade ontológica da imagem a partir de suas formas expressivas sensíveis e não necessariamente visíveis é entrar em diálogo com o ethos de muitos pensamentos mágicos ameríndios e bantus, para os quais a imagem, tal qual o som, constitui-se como modulação do imenso campo sutil que atravessa todos os seres. Como nos lembra Kopenawa “todos na floresta têm uma imagem” e todas elas falam (ou podem falar) conosco.

    Como manifestação de um diálogo inter-específico compreendemos as imagens e suas complexas relações como astúcias, “práticas de desvio”. Frente ao impossível dado como horizonte pelo empreendimento colonial, com a retirada e posterior imposição da língua, da cultura e do território, as práticas de desvio agem sobre essas superfícies alargando, ampliando seus sentidos, criando possíveis: fissuras onde se praticam modos de liberdade. Sob o comando dos caboclos as imagens afirmam sua natureza metamórfica e inauguram uma outra semântica visual, como potência de enunciação proclamam uma vertiginosa trama tipicamente inventiva e libertária. Às imagens lançamos algumas perguntas. Haverão respostas?

    Precipitados sobre o abismo da experiência não pretendemos retornar dessa travessia com alguma ferramenta útil ao pensamento, ao contrário, é o silêncio povoado de presenças que buscamos, ali, talvez, repouse alguma fagulha do novo. Pensar a imagem enquanto portadora das substâncias do mundo e compreender a sua dimensão pré-linguística na construção de relações sensíveis a partir do campo cinematográfico significa convocar à expressão as potências rumorosas, clandestinas e fugidias, através dos conhecimentos que emergem dessas potências vislumbrar novas tessituras éticas, estéticas e epistemológicas que possam confluir para o exercício de imaginação de outros mundos possíveis aos quais à indeterminação da imagem dá passagem, engendrando outra práxis semântica – ambígua e direcionada – que atue contra a historiografia hegemônica dos corpos, da linguagem e contra os muros da política.

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron, tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

    GLISSANT, Édouard. O pensamento do tremor. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard / Editora UFJF, 2014

    GOLDMAN, Marcio. Contradiscursos afroindígenas sobre mistura, sincretismo e mestiçagem. Estudos Etonográficos. In: Revista de Antropologia da Ufscar. Rio de Janeiro, 2017.

    KOPENAWA, ALBERT, Bruce, Davi. A Queda do Céu. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

    SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.