Ficha do Proponente
Proponente
- Luís Gustavo Baptista e Ribeiro (PPGAC-ECA USP)
Minicurrículo
- Formou-se no Curso de Ciências Moleculares da USP com ênfase em Neurociência. Obteve o título de mestre pela Faculdade de Medicina da USP, especializando-se na área de Psiquiatria, estudando mudanças funcionais no cérebro de idosos com Doença de Alzheimer. Engajou-se também em uma segunda graduação em Audiovisual, também na USP, com intercâmbio de um ano na Universidade de Poitiers, na França. Estuda desde então interfaces entre cinema e pintura, aproximando Andrei Tarkovski e Joan Miró.
Ficha do Trabalho
Título
- Tarkovski e Miró: do capital social ao político
Resumo
- Faremos uma comparação entre O Espelho (1974), de Andrei Tarkovski, e o tríptico A Esperança do Condenado à Morte (1974), de Joan Miró. Autores que revelavam suas visões de mundo de forma sublimada e simbólica, ambos foram erroneamente categorizados pela crítica como apolíticos; esses trabalhos explicitam a falta de fundamento dessa tese. Empregaremos dois conceitos de Pierre Bourdieu – capital social e habitus – como hipóteses para explicar uma práxis artística análoga em ambos.
Resumo expandido
- A comparação entre o pintor catalão Joan Miró (1893-1983) e o cineasta soviético Andrei Tarkovski (1932-1986) pode causar certo estranhamento inicial. De um lado, temos um cinema de associações poéticas que rompe com as regras convencionais de narrativas lineares, mas nem por isso abraça a abstração. De outro, temos uma forma de representar a realidade que a sublima em um conjunto de símbolos comumente caracterizados como opacos ou herméticos, inscrevendo-a justamente no campo da arte abstrata.
No entanto, insistimos na validade da aproximação entre os dois artistas que, em última análise, mostram-se interessados em capturar a condição e a psique humanas de maneira muito própria, mediados por visões de mundo similares. Para comprová-lo, recuperamos as trajetórias de ambos: primeiro, no âmbito familiar, como herdeiros de habitus (Bourdieu, 1986) que os lançaram às artes; em seguida, como cidadãos cuja relação difícil com sua terra-natal (Heimat) continuamente os confinou a uma espécie de não-lugar: muito críticos quando vivendo em suas pátrias e altamente saudosos quando distantes delas. Esse movimento se acirra sobretudo nos anos 1970 e 80, últimas décadas de suas vidas, após serem ambos forçados ao exílio pelos regimes dominantes em seus respectivos países.
Nota-se como essa ambivalência de origem os levou a elaborações não-convencionais de seus posicionamentos políticos. É frequente que suas obras, embora se esquivem de uma interpretação fácil ou simplista, transpareçam esses posicionamentos, mas jamais de forma explícita ou imediata. Talvez por isso ambos tenham sido acusados de um certo caráter apolítico por diversos críticos, como se fossem meros situacionistas de fraca articulação política. Essa tese, é claro, não se sustenta quando analisamos com mais profundidade o corpus artístico de cada um deles: arrojado, pulsante e impregnado de questões e críticas sociais, psicológicas e (por que não dizer?) políticas.
A bem da verdade, Miró e Tarkovski produziram arte instados pela realidade em que estavam inscritos: uma Europa do pós-guerra, de moral fortemente abalada e com um inconsciente coletivo artístico muito afetado pelos horrores engendrados pelos governantes do período. Dessa forma, é absolutamente inaceitável qualquer análise que omita suas trajetórias ou as esvazie de significado político, pintando-os meramente como artistas ensimesmados, que lidam somente com suas próprias neuroses. Muito pelo contrário, o diuturno contato com seus pares e correligionários os moldaram e causaram impactos profundos em suas obras, bem como o fez a situação de seus países.
Para estabelecer essa comparação, elegemos duas obras contemporâneas entre si: o filme O Espelho de Tarkovski e o tríptico A Esperança de um Condenado à Morte de Miró, ambos de 1974. Nelas, nota-se um forte traço da memória constitutiva dos dois artistas, sem a qual não se poderia trabalhar com tanto afinco os temas abordados. No primeiro, isto se revela pelas passagens que recuperam a infância de Tarkovski de maneira a constituir um quebra-cabeça daquilo que, já na vida adulta, lhe foi mais pregnante; no segundo, a memória é acionada a partir do grande trabalho corporal e meditativo que exercia Miró, no fim de sua vida, a fim de chegar ao estado propício para enfim deixar seu gesto correr livre na tela, pois ele buscava entranhar todo o seu passado para, só então, simplesmente pintar.
Ademais, essas obras apresentam forte teor político: Tarkovski emprega imagens de arquivo da Guerra Civil Espanhola e Miró pinta sobre um revolucionário, amigo seu, que é executado pela ditadura franquista. Nesse sentido, buscamos estabelecer uma relação entre o passado desses artistas e sua práxis artística, analisando como chegaram a esses momentos de aproximação temática, partindo de lugares tão distintos: a Catalunha e a Rússia.
Bibliografia
- AGAMBEN, Giorgio. “Notes on Gesture”, in Infancy and History: The Destruction of Experience. Londres/ Nova York: Verso, 1993.
BOURDIEU, Pierre. “Habitus, Code e Codification”, in Actes de la Recherche en Sciences Sociales v. 64, setembro de 1986, p. 40-44.
BRETON, André. “Artistic Genesis and Perspective of Surrealism”, in Surrealism and Painting, Londres, 1972.
COMBALÍA, Victoria. “Miró’s strategies (Rebellious in Barcelona, Reticent in Paris”, in Joan Miró: Snail, Woman, Flower, Star. WIESE, Stephan von; MARTIN, Sylvia (ed.). Dusseldorf: Museum Kunst Palast, 2002.
DANIEL, Marko. “Joan Miró: the triptychs”, in Joan Miró: The Ladder of Scape. DANIEL, Marko; GALE, Matthew (ed.). Barcelona: Fundació Joan Miró, 2011.
SITNEY, P. Adams. “Andrey Tarkovsky, Russian Experience, and the Poetry of Cinema”, in New England Review, v. 34, n. 3-4, 2014, p. 208-241.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.