Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Alfredo Taunay Colins de Carvalho (Sem Víncula)

Minicurrículo

    Doutor em Media Artes e mestre em Cinema pela UBI (Portugal), é bacharel em Produção Cultural pela UFF. Foi bolsista da FAPEMA. Integra a organização da Conferência Internacional de Cinema e Outras Artes e é um dos editores da coleção Cinema e Outras Artes – Diálogos e Inquietudes Artísticas. Atuou na produção de rádio, TV e cinema, e integrou a equipe do festival Porto Femme International Film Festival, do Shortcutz Covilhã e Shortcutz Aveiro.

Ficha do Trabalho

Título

    Gênero, família e resistência: o queer em A Vida Invisível

Resumo

    Este trabalho apresenta uma análise queer do filme A Vida Invisível (Karim Aïnouz, 2019), centrando-se nas resistências das protagonistas às normas de gênero, maternidade compulsória e estrutura familiar patriarcal. Tendo a etnografia de tela como metodologia e com base nos estudos queer e de gênero no cinema, este trabalho destaca como o filme constrói experiências dissidentes que rompem com os modelos hegemônicos do que é ser mulher, da maternidade compulsória e constituição familiar.

Resumo expandido

    Este trabalho propõe uma análise do filme A Vida Invisível (2019), de Karim Aïnouz, sob a perspectiva dos estudos queer e feministas, com o objetivo de investigar como a obra desestabiliza os discursos normativos sobre gênero, maternidade e família. Ambientado no Rio de Janeiro dos anos 1950, o filme acompanha a trajetória de duas irmãs, Guida e Eurídice, separadas por uma estrutura patriarcal que silencia, domestica e se esforça para apagar as subjetividades femininas. Apesar de impedidas de viverem plenamente seus desejos, ambas constroem formas de resistência cotidiana, instaurando pequenos gestos de subversão frente ao machismo estrutural de sua época. A invisibilidade que nomeia o filme não é apenas literal, mas simbólica: refere-se àquilo que permanece fora da ordem do visível, do nomeável e do aceitável dentro de uma sociedade cisheteronormativa.
    A partir de uma abordagem teórica fundamentada em autoras e autores dos estudos queer e dos estudos de gênero no cinema, argumenta-se que A Vida Invisível é um exemplo de cinema queer-feminista ao desarticular as categorias fixas de identidade e apresentar formas alternativas de existência. Em vez de abordar a dissidência sexual de modo explícito, a obra constrói sua potência política por meio da centralidade das experiências femininas e da recusa a modelos familiares convencionais. A família, tradicionalmente estruturada em torno da autoridade paterna e da heterossexualidade compulsória, é desfeita e reimaginada por meio de vínculos de afeto entre mulheres — mães e filhas, amigas, irmãs.
    A figura da maternidade é particularmente significativa nessa análise. Guida, expulsa de casa por engravidar sem estar casada, encontra abrigo na casa de outra mulher, Filomena, com quem forma um núcleo familiar que desafia o modelo nuclear. A criação do filho de Guida em um ambiente afetivo, mas sem a presença masculina, propõe outra ideia de maternidade e cuidado, descolada da obrigação biológica ou da imposição moral. Tal arranjo pode ser lido, à luz dos estudos queer, como um espaço de dissidência, onde os laços são tecidos fora das lógicas normativas da filiação.
    Do outro lado, Eurídice, mesmo dentro do casamento tradicional, experimenta a anulação de seus desejos e a frustração de seu projeto de vida como pianista. Sua trajetória evidencia a violência simbólica operada pelo ideal de feminilidade passiva e doméstica, bem como os efeitos psíquicos da repressão e da ausência de escolha. A separação entre as irmãs — mantida artificialmente por cartas interceptadas — reforça o tema da invisibilidade, e com ele, a impossibilidade de que afetos dissidentes sobrevivam dentro do sistema patriarcal.
    A estética do filme também colabora para a construção dessa leitura. A direção de arte, os enquadramentos fechados e o ritmo melancólico não apenas ambientam a narrativa, mas traduzem visualmente a invisibilidade e o silenciamento das personagens. A ausência de um reencontro entre as irmãs, ainda que dolorosa, torna-se estratégia narrativa e política: o filme aposta na potência do inacabado, do que não se realiza, do que falta.
    Utilizo a etnografia de tela como abordagem metodológica. Inspirada na etnografia tradicional, essa metodologia desloca o campo da observação para o audiovisual, priorizando uma escuta atenta e sensível das imagens, sons, gestos e silêncios. Com base em vivências estéticas e afetivas, a etnografia de tela permite compreender como os sentidos queer emergem da mise-en-scène, da narrativa e da construção das personagens, reconhecendo o cinema como espaço de produção de subjetividades e de resistência política.
    A Vida Invisível atualiza debates centrais dos estudos queer e feministas ao deslocar o olhar para experiências marginais, recusar modelos de normalidade e propor outras formas de existência, cuidado e resistência. O filme, ao tornar visível aquilo que foi apagado pelas narrativas dominantes, nos convida a repensar os modos de vida e os afetos possíveis na sociedade

Bibliografia

    AÏNOUZ, Karim. A Vida Invisível [Longa-metragem, ficção]. Brasil; Alemanha, 2019. 139 min.
    ANZALDÚA, Glória. Borderlands/La Frontera. São Francisco: Aunt Lute, 2007.
    BUTLER, Judith. Problemas de género. Lisboa: Orfeu Negro, 2017.
    COLINS, Alfredo Taunay. De Nova Iorque ao Brasil profundo: o queer no cinema de Karim Aïnouz. Tese (Doutorado em Media Artes). Universidade da Beira Interior, Portugal, 2023.
    LAURETIS, Teresa de. Queer texts, bad habits, and the issue of a future. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 17, n. 2-3, p. 243–263, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1215/10642684-1163391. Acesso em: 6 abr. 2025.
    MARCONI, Dieison. Ensaios sobre autoria queer no cinema brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG, 2021.
    MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
    SWAIN, Tania Navarro. Para além do binário: os queer e os heterogênero. Revista Gênero, n. 1, p. 87–98, 2001.