Ficha do Proponente
Proponente
- Carlos Eduardo da Silva Ribeiro (UFSM)
Minicurrículo
- Professor substituto na Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen, Departamento de Comunicação. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ficha do Trabalho
Título
- Martírio (2016) vai à Comissão de Agricultura: quem é “índio” e quem é “brasileiro”?
Resumo
- Analisamos uma cena de Martírio (Vincent Carelli, 2016) na Câmara dos Deputados, na qual ocorre uma discussão oficial acerca da demarcação de territórios indígenas. Nos detemos, contudo, em uma discussão menor e concomitante, que se passa às margens da sala: indígenas e ruralistas acusam uns aos outros de “falsos brasileiros” e “falsos índios”. Buscamos compreender como o desentendimento dá a ver mais do que uma divergência entre modos de identificação, mas entre cosmovisões.
Resumo expandido
- O trabalho endereça pressupostos do ST Cinemas, Comunidades, Territórios ao tecer um gesto analítico ancorado na materialidade de um filme gestado em um contexto de luta; gesto analítico que entrelaça, a partir da problemática da “representação” e do “ser”, os modos de vida e perspectivas que o dão forma e conteúdo ao filme. Analisamos certo trecho do documentário Martírio (Vincent Carelli, 2016), em uma cena na Comissão da Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, na qual ocorre uma discussão oficial acerca da demarcação de territórios indígenas. Nessa cena, construída através da incorporação de imagens da TV Senado, a então senadora e Ministra-chefe da Casa Civil Gleise Hoffman é “convocada a prestar esclarecimentos” acerca da identificação e delimitação das terras indígenas no Brasil, nas palavras do presidente da sessão, deputado Giacobo (PR-PR). Esses esclarecimentos são prestados a uma maioria de deputados ruralistas que pretendem passar a si mesmos algumas das atribuições da Funai, e assim frear o processo demarcatório e homologação de territórios indígenas. Os indígenas, que não têm voz aos microfones alguma na discussão oficial, assistem à sessão no fundo da sala. Dentre as cabeças que compõem a mesa da sessão, a única feminina é também a única não representante do agronegócio, justamente Gleisi Hoffman, na posição de inquirida.
Nos detemos analiticamente em uma discussão menor, que ocorre ao mesmo tempo, mas às margens da câmera e na margem da câmara, e que por um momento perturba essa discussão oficial: em um canto da sala, enquanto indígenas que assistiam à sessão chamam provocativamente os ruralistas de “falsos brasileiros”, ruralistas respondem acusando-os de “falsos índios”. Buscamos compreender como esse desentendimento dá a ver mais do que uma divergência entre modos de identificação, ou seja, mais do que esforços de pôr à prova a identidade declarada uns dos outros, mas entre cosmovisões que situam diferencialmente os lugares e nomes das coisas.
A acusação indígena de os políticos serem “falsos brasileiros” parte da reivindicação de uma ancestralidade: deflagra a artificialidade da construção do pertencimento ao Brasil, comunidade imaginada (Anderson, 1991) que leva mais intensamente em conta os migrantes do que os nativos, transformados estes últimos em minoria política e numérica; de maneira que os “indígenas”, no latim “nato do lugar”, são o outro da nação, não os que a elaboraram. Já a acusação de que os indígenas seriam “falsos índios” decorre da expectativa de que indígenas legítimos seriam puros, intocados pelo processo colonial, e que, após o advento do Estado no que hoje chamamos Brasil, se tornam, a contragosto ou não, brasileiros.
Uma análise dessa cena já foi feita por Brasil (2016), relacionada ao dissenso em Rancière (1996). Em nossa tese (Ribeiro, 2024), desenvolvo acerca do modo como essa cena dá a ver o modo com que cada grupo reconhece ou não outro, e como os ruralistas constroem discursivamente o “brasileiro” em oposição ao que denominam “índio”. Aqui, em um outro gesto analítico, pretendo entender como cada perspectiva em cena constitui a si mesma não apenas como diferença em relação à outra, mas que essa diferença decorre, de antemão, de naturezas ontológicas que são outras. O conflito, entendido desse modo, seria mais do que a construção de identidades ou posições-de-sujeito diferentes entre si em um processo de representação, mas sim (também, sobretudo, antes de tudo) decorrência do choque entre concepções de mundo e modos de nomeação das coisas que preexistem à cena em si.
Bibliografia
- ANDERSON, Benedict. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. London: Verso. 1991.
BRASIL, André. Retomada: teses sobre o conceito de história. In: Catálogo do Forum.doc. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996.
RIBEIRO, Carlos Eduardo da Silva. Potências e atualizações do documentário militante em Martírio (2016). 2023. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 29 de jun. de 2023.