Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Thalita Cruz Bastos (UAM)

Minicurrículo

    Professora do PPGCOM-UAM, Doutora em Comunicação (PPGCOM-UFF), professora dos cursos de Cinema e Audiovisual na Universidade Veiga de Almeida, e da Universidade Anhembi Morumbi. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Afetos e corporeidades no audiovisual contemporâneo. Pesquisa temas relacionados à relação entre corpos, afetos e performance no audiovisual contemporâneo, com ênfase nos Estudos Queer e Feministas no Cinema.

Ficha do Trabalho

Título

    Fantasmas do desejo: encenação de afetos sensórios em Queer, de Luca Guadagnino

Seminário

    Tenda Cuir

Resumo

    O artigo analisa o filme “Queer” (2024), de Luca Guadagnino, a partir das noções de desejo homossexual, encenação de afetos, coreografia política e realismo sensório. A mise-en-scène investe na afetação e na corporeidade como forças expressivas. Através da contenção dos gestos, da suspensão do toque e da performance da solidão gay, o filme constrói uma estética do desencontro. O desejo queer é explorado como potência errante e espectral, revelando forças dissidentes que escapam à normatividade.

Resumo expandido

    Este artigo propõe uma análise do filme “Queer” (2024), de Luca Guadagnino, a partir das noções de encenação de afetos, coreografia política, desejo homossexual e realismo sensório. Adaptado do romance homônimo de William S. Burroughs (1985), o longa narra a trajetória de Lee, um homem norte-americano exilado no México dos anos 1950, que desenvolve uma obsessão silenciosa e aparentemente não correspondida por Allerton, um jovem ex-combatente. Situado em um território de deslocamentos afetivos, o filme constrói uma paisagem sensorial atravessada por silêncios, tensões sexuais e performances instáveis de masculinidade. Ao evitar a concretização do desejo, Guadagnino encena o vazio, a espera e o desencontro como elementos centrais de uma experiência queer, elaborando uma estética da suspensão onde o desejo nunca se realiza plenamente, mas se arrasta em forma de espectro.

    O artigo propõe investigar como “Queer” opera uma dramaturgia da contenção, mobilizando os corpos masculinos como superfícies de inscrição dos afetos e das ausências. Através de gestos mínimos, olhares desviados e distâncias coreografadas, Guadagnino encena o desejo como uma força latente e ambígua. Em diálogo com a fenomenologia queer de Sara Ahmed (2006), propõe-se aqui que os corpos em “Queer” não se orientam segundo a lógica normativa do desejo, mas se desviam, desalinham, erram. O desvio, nesse contexto, é não apenas sexual, mas também espacial e perceptivo: Lee é uma figura deslocada, que habita o mundo como quem não encontra lugar, tocado por um desejo que o distancia continuamente do objeto desejado.

    Ao explorar o movimento dos corpos — ou a falta dele —, o filme se aproxima da concepção de coreopolítica formulada por André Lepecki (2012), que entende a coreografia como uma ferramenta de visibilização e contestação de normas sociais e afetivas. Em “Queer”, a dança não se dá apenas em termos coreográficos tradicionais, mas nos microgestos e nas hesitações que compõem a relação entre Lee e Allerton. Esses movimentos imprecisos produzem um tipo de coreografia do desejo prestes a acontecer, mas nunca se concretiza.
    Neste sentido, a solidão gay encenada no filme é também performance. Inspirando-se na noção de performance como tempo espiralar desenvolvida por Leda Maria Martins (2022), este trabalho propõe que os corpos em “Queer” performam ausências e insistências: o que não foi vivido, o que não pode ser dito, o que não se concretiza. O corpo de Lee se torna arquivo de uma afetividade interrompida, onde cada gesto contém uma história não narrada. O tempo não é linear, mas espiralado — retorno constante a um momento que insiste em não passar. A partir da reflexão de Guy Hocquenghem (1972), o desejo homossexual é pensado aqui como potência antiidentitária e desestabilizadora, marcada por sua recusa à fixação e à representação totalizante. O desejo de Lee é irrepresentável e, por isso, politico.

    Por fim, articulando a estética do filme à proposta de realismo sensório de Erly Vieira Jr. (2019), este trabalho entende “Queer” como um cinema da sensibilidade excessiva, em que o real se manifesta menos pela narrativa e mais pela vibração dos corpos, pela atmosfera dos espaços, pela densidade dos afetos. Guadagnino investe em uma linguagem tátil, em uma montagem que privilegia o detalhe e o instante, construindo um espaço fílmico onde a experiência do desejo é percebida através do sensório: som abafado, luz opaca, texturas corporais e dilatação do tempo.

    “Queer” se insere, assim, em uma linhagem de cinema queer que rejeita a transparência dos afetos e das identidades. Ao invés de representar o amor homossexual como reconciliação ou plenitude, Guadagnino propõe um cinema dos restos, dos fragmentos, dos fantasmas. Através da dança dos não-toques, dos silêncios espessos e das presenças que falham, o filme faz aparecer os fantasmas do desejo — forças queer que insistem, mesmo quando negadas, em ocupar a cena.

Bibliografia

    AHMED, Sara. Queer Phenomenology: Orientations, Objects, Others. Durham: Duke University Press, 2006.
    AHMED, Sara. The Cultural Politics of Emotions. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2014.
    HOCQUENGHEM, Guy. O desejo homossexual. Rio de Janeiro: A Bolha Editora, 2020 [1972].
    LEPECKI, André. Exaurir a dança: performance e política do movimento. São Paulo: n-1 edições, 2012.
    MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. São Paulo: Perspectiva, 2022.
    PRYSTHON, A. Furiosas frivolidades: artifício, heterotopias e temporalidades estranhas no cinema brasileiro contemporâneo. Revista Eco-Pós, [S. l.], v. 18, n. 3, p. 66–74, 2015. DOI: 10.29146/eco-pos.v18i3.2763. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/2763 . Acesso em: 5 abr. 2025.
    VIEIRA JR., Erly. Realismo sensório no cinema contemporâneo. 1. ed. Vitória: Edufes, 2020.