Ficha do Proponente
Proponente
- Samuel Macêdo do Nascimento (UFBA)
Minicurrículo
- Doutor em Fotografia e Audiovisual pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Integra o Laboratório de Estudos e Experimentações em Artes e Audiovisual (LEEA) na UFC. Atualmente, é professor substituto do Bacharelado Interdisciplinar em Artes do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Ficha do Trabalho
Título
- Obras Repatriadas: Paralelos entre Cinema e Museus
Resumo
- Este ensaio investiga de que forma os filmes apresentam os museus como espaços de resistência artística. Ao mesmo tempo, essas obras cinematográficas refletem aspectos significativos das histórias de seus acervos, problematizando os processos de colonização na Modernidade (VERGÈS, 2023). A investigação estabelece diálogos entre a ficção contemporânea e os documentários, ressaltando o museu como um lugar de contestação, preservação e reinvenção de memórias.
Resumo expandido
- No campo da educação museal, obras, acervos e coleções têm um papel pedagógico fundamental. Dentro de uma perspectiva freiriana, essas peças encapsulam a história de um povo e ensinam. Bacurau (2019, Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles) retrata o museu como um espaço aparentemente subestimado pelos inimigos, mas profundamente vital para a sobrevivência e resistência do povo nordestino. Objetos como fotografias, ferramentas e armas — ou até mesmo a mancha de sangue de uma mão na parede do museu, vestígio espectral de um massacre mal sucedido — narram histórias de resistência contra sistemas oligárquicos, evidenciando a força indomável daquela comunidade.
Conforme mencionei em meu último texto, apresentado durante o XXVII Congresso da SOCINE em 2024: o desenrolar do plano de destruição da pequena Bacurau poderia ter tomado um rumo diferente, caso os personagens provenientes de países do norte global tivessem se dedicado a explorar e compreender o Museu da cidade.
Em As Estátuas Também Morrem (1963, Ghislain Cloquet, Chris Marker, Alain Resnais), as obras de arte transcendem o espaço físico do museu, funcionando como personagens e fantasmas que expõem o saque colonial praticado por países europeus em relação às nações de África. Essas obras, além de objetos de culto, evidenciam questões de apropriação cultural e histórica. Aqui surge a indagação: um “novo mundo” foi criado, mas para quem?
A interseção entre arte e cinema, especialmente nas artes visuais e performance, abre caminhos para explorar a criação e construção de novos cenários. Cada vez mais, artistas contemporâneos têm incorporado a produção audiovisual como elemento indispensável em seus processos expositivos. Além disso, a linguagem audiovisual expande significativamente as possibilidades de reflexão sobre o campo museal, fomentando diálogos entre o acervo, o espaço e o público.
Um exemplo atual é a luta da artista indígena baiana Glicéria Tupinambá pela repatriação dos mantos Tupinambás, mantidos durante séculos em museus europeus. No filme O Manto e o Sonho (2023, Elisa Mendes), que integra o ciclo Memórias Ancestrais (2023, Anna Dantes), Glicéria compartilha sua relação com os mantos e a pesquisa sobre os usos rituais desses artefatos por seu povo. Ela reflete sobre a jornada de recuperação desses objetos, muitos deles preservados em coleções privadas e museus na Europa. Paralelamente, Glicéria explora os sonhos que orientam seu aprendizado e alimentam sua determinação na busca pela repatriação.
O gesto de Glicéria suscita uma questão crucial: como lidar com as obras repatriadas? De que maneira a linguagem audiovisual, amplamente empregada nas curadorias de eventos artísticos de destaque, como as recentes edições da Bienal de São Paulo e da Bienal de Veneza, pode contribuir para a reivindicação e a reorganização democrática dos acervos e reservas técnicas?
Tanto o cinema quanto os museus são espaços de memória. Contudo, como observado em Bacurau, toda memória carrega em si elementos de ficção. É momento de repensar a maneira como estruturamos nossa história e nossa arte, adotando uma perspectiva contra-colonial. Vergès (2023, p. 33) ressalta: “O museu é um grande túmulo onde mortos anônimos permanecem insepultos.” Nesse cenário, museus e cinemas, em colaboração, podem reanimar esses fantasmas, abrindo caminho para novas narrativas e sonhos capazes de resistir às heranças coloniais, enquanto promovem diálogos que favoreçam soluções justas e dignas para a repatriação de obras indígenas, africanas e outras.
Bibliografia
- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. – 5. ed. – São Paulo: Cortez, 2011.
BRENEZ, Nicole. Contra-ataques. In: DIDI-HUBERMAN. (org.). Levantes. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
MBEMBE, Achile. Crítica da Razão Negra. Tradução: Marta Lança. Portugal: Antígona, 2014.
SHOHAT, Ella. STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. – São Paulo: Cosac Naify, 2006.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia – Ensaios. Tradução: Companhia das Letras. Estados Unidos, Farrar, Straus & Giroux, 1977.
TUPINAMBÁ, Glicéria; TUPINAMBÁ, Jéssica; PAVELIC, Nathalie. “Mais do que objetos”: duas lideranças e pesquisadoras Tupinambá em busca dos seus “ancestrais” na França. Argumentos, v. 21, n. 1, p. 250-278, jan./jun. 2024.
VERGÈS, Françoise. Descolonizar o museu: programa de desordem absoluta. – São Paulo: Ubu Editora, 2023.