Ficha do Proponente
Proponente
- Ana Lúcia Barbosa Moraes (UFRN)
Minicurrículo
- Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social da UFRN com experiência nas áreas de Teoria literária e Comunicação e Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: análise e crítica do cinema, formação cultural do Brasil, coletivos culturais, fronteiras e territórios, migração, tradução e interpretação, teoria da narrativa, oficinas de escrita, novas tecnologias e oralidade. Atualmente pesquisa intervenções culturais, estratégias estéticas e políticas na atualidade.
Ficha do Trabalho
Título
- APRENDENDO A VER EM RÉCITS D’ELLIS ISLAND DE ROBERT BOBER E GEORGES PEREC: UMA REFLEXÃO ESTÉTICA
Resumo
- Este trabalho pretende mostrar como procedimentos estéticos no filme de não ficção Récits d’Ellis Island (Relatos da Ilha Ellis), discutidos e teorizados por seus autores, Robert Bober e Georges Perec, a partir do questionamento do que significa “ver”, denunciam lugares pré-definidos pelos poderes instituídos, apontando para a impossibilidade de construções de sentido individuais e pré-determinadas, já que toda enunciação é coletiva, social e política.
Resumo expandido
- Há uma problematização atual do conceito de sujeito em prol da necessidade de pensarmos as subjetividades como múltiplas e em processo, de forma coletiva e prática. Trata-se do mundo dos acontecimentos no qual vivemos e nos movemos. Considerar a subjetividade a partir de sua materialidade significa poder considerá-la como imanente, polifônica, coletiva e cotidiana.
A principal preocupação de Georges Perec e Robert Bober ao conceberem seus procedimentos estéticos no filme Récits d´Ellis Island (Relatos da Ilha Ellis) foi justamente o questionamento de como dar a ver a realidade cotidiana dos que passaram pela ilha.
ENUMERAÇÕES E DESCRIÇÕES DO COTIDIANO EM RÉCITS D’ELLIS ISLAND: o que significa ver?
O filme não ficcional, realizado entre 1978 e 1980, trata do centro de controle dos serviços federais de imigração norte-americanos que funcionou entre 1892 e 1954 na Ilha Ellis, perto de Manhattan. O filme é dividido em duas partes: Traces (Rastros), objeto de investigação neste trabalho, que explora, comentando, o espaço-tempo de espera e triagem que foi a ilha; e Mémoires (Memórias), constituída basicamente de entrevistas.
No início do filme, vemos Manhattan ao fundo, enquanto a câmera mostra a aproximação da Ilha Ellis, acompanhada da enumeração, por uma voz em off, como em uma litania, dos migrantes que por ali passaram, discriminados por sua proveniência.
Perec afirma que sua prática das listas está ligada aos espaços e ao questionamento do modo como vemos o real, dentro do que ele considera como campo sociológico da sua obra:
Como descrever um lugar? Em geral, faz-se uma escolha muito breve e acredita-se que se viu. Na verdade, o que se viu foi o que foi dado a ver, sem que se olhasse por trás. Para olhar para além daquele lugar, encontrar aí um sentimento de insegurança ou transformá-lo em questão, é preciso descrevê-lo com uma atenção maníaca. Como? Por um lado, há as enumerações. E o filme começa com quatro enumerações: sobre os países de onde partiram os emigrantes, as companhias de navegação, os portos de onde partiam e o nome dos barcos. Pois, se dissermos “Dezesseis milhões de emigrantes transitaram pela Ilha Ellis”, isso não quer dizer nada, mas se enumerarmos concretamente as coisas durante três minutos, temos uma ideia do que aconteceu, dessa Europa que se esvazia… (Perec, 2012, p.139)
Contra as longas e anônimas listas de arquivo, vemos uma enumeração que, declamada junto às imagens, dá relevo e profundidade aos dados, ressaltando que estão se referindo a pessoas e não a números aleatórios.
Além das enumerações, há as descrições exaustivas. Perec explica o procedimento: “Pegar uma imagem na tela, fixá-la por um minuto, e tentar descrever tudo o que se vê. Percebe-se então que não sabemos ver”. (Perec, 2012, p. 139)
Perec preocupa-se com o que é da ordem do “infra-ordinário”, termo criado por ele para se referir a um modo diferente de ver. Ele se propõe a descrever o real de modo saturado. O problema colocado pelo discurso institucional, que as listas vêm questionar, é que ele pretende dar acesso direto ao passado. Mas, para Perec, os rastros do passado não são emanações evidentes, é preciso aprender a ver:
Minha “sociologia” do cotidiano não é uma análise, mas somente uma tentativa de descrição […]. Trata-se de um descondicionamento: tentar apreender, não o que os discursos oficiais chamam de acontecimento, o que é importante, mas o que está por baixo, o infra-ordinário, o barulho de fundo que constitui cada instante de nosso cotidiano. (Perec, 2003, p.93-94)
A pesquisa estética de Perec e Bober é uma afirmação de práticas criativas, enriquecedoras das relações entre pessoas – uma luta política por novas possibilidades de dar sentido à existência. Récits d’Ellis Island vem nos interpelar e mostrar que estratégias estéticas representam uma importante força de transformação e ação política.
Bibliografia
- BEUCHOT, P., BOBER, R., CAILLAT, F. et al. Filmer le passé dans le cinema documentaire. Paris: L’Harmattan, 2003.
GUATTARI, F. “Da produção de subjetividade”. In: Imagem-máquina. PARENTE, A. (org). Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 177-191.
HECK, Maryline. “Pour um Perec politique” In: REGGIANI, C. Relire Perec, Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2017, p. 73-88.
https://doi.org/10.4000/books.pur.176224
PENAFRIA, Manuela. “Análise de Filmes- conceitos e metodologia(s)” In: VI Congresso SOPCOM, Abril de 2009
PEREC, Georges. En dialogue avec l’époque, Paris, Joseph K, 2012.
PEREC, Georges. Penser / Classer, Paris, Les Éditions du Seuil, 2003.
PEREC, Georges. Entretiens et Conférences. RIBIÈRE, M.; BERTELLI, D. (org.), Nantes: Joseph K, 2003.
RÉCITS d’Ellis Island: Traces. Direção: Robert Bober. Texto: Georges Perec. França, 1980. 2 episódios de 58 minutos, color., 16mm.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a2wwATsLRug