Ficha do Proponente
Proponente
- João Guilherme Batista Cardoso (UFBA)
Minicurrículo
- João Guilherme Batista Cardoso é mestrando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e graduado em História pela mesma instituição. Integra o grupo de pesquisa (An)arqueologias do Sensível desde 2021. Pesquisa o cinema de John Ford com base na metodologia da análise figural. Tem interesse em Cinema, Estética, Crítica, História Contemporânea e nas relações entre cinema e memória.
Ficha do Trabalho
Título
- Paisagens Assombradas: um olhar comparativo entre Landscape Suicide (1985) e Sangue de Heróis(1948)
Eixo Temático
- ET 3 – FABULAÇÕES, REALISMOS E EXPERIMENTAÇÕES ESTÉTICAS E NARRATIVAS NO CINEMA MUNDIAL
Resumo
- Este trabalho propõe uma leitura comparativa entre Sangue de Heróis (John Ford, 1948) e Landscape Suicide (James Benning, 1985), articulando o western e o cinema experimental. A partir da análise figural, discute-se como a paisagem cinematográfica se torna um espaço de inscrição do trauma, onde o passado não reconciliado da violência retorna como espectro na imagem, convocando o testemunho do não-humano.
Resumo expandido
- Este trabalho propõe, por meio da comparação entre Sangue de Heróis (John Ford, 1948) e Landscape Suicide (James Benning, 1985), discutir os conceitos de trauma e espectralidade na paisagem cinematográfica. A metodologia adotada é a análise figural, conforme formulada por Nicole Brenez, que propõe uma leitura para além da representação, explorando as potências e multiplicidades da imagem. Interessa-nos, assim, aproximar analiticamente obras de origens estéticas e históricas distintas: enquanto uma se inscreve na tradição do western, a outra pertence ao cinema experimental norte-americano. No entanto, colocadas em relação, ambas revelam sensibilidades em comum. Dessa forma, a distância entre os filmes, longe de ser um obstáculo, constitui um campo fértil para a experimentação crítica.
Partimos da formulação de Georges Didi-Huberman (1995), ao comentar os afrescos de Fra Angelico, segundo a qual as figuras não apenas habitam um espaço, mas são por ele produzidas. Tal ideia desloca o espaço da condição de mero cenário para o produtor de sentido da imagem. Esse mesmo princípio está no cerne do cinema de James Benning, especialmente em Landscape Suicide, filme em que o diretor revisita dois casos de crimes violentos ocorridos nos Estados Unidos. Benning recusa, no entanto, qualquer reencenação dos atos. Em vez disso, retorna às cidades onde os crimes ocorreram e repousa sua câmera sobre o horizonte, registrando longos planos estáticos. Ao longo dos 95 minutos, é a paisagem que é convocada a testemunhar para a câmera, que busca os rastros do horror.
Enquanto Benning enxerga o espaço como testemunha do trauma, o western, como gênero, realiza um gesto análogo ao protagonizar a paisagem na medida em que inscreve a violência como motor da fundação nacional. Nesse tipo de cinema, o horizonte não é simples pano de fundo, mas elemento estruturante da mise-en-scène. Diante da vastidão do deserto, a figura humana surge diminuída pela opressão inerente à imensidão dos os cânions vertiginosos, o céu de azul intenso, a poeira que turva a imagem e o solo árido interminável. O espaço funda a gramática simbólica e estética do gênero.
No cânone dessa tradição está John Ford, cuja filmografia revela uma obsessão pela paisagem do Oeste, à qual ele continuamente retorna ao longo de sua carreira. Um dos marcos dessa relação é Sangue de Heróis, filme em que a narrativa acompanha um regimento liderado por um coronel racista que conduz seus soldados a uma missão suicida contra os povos indígenas Apache. Entre a guerra e o massacre, o que se mantém constante são os planos dos rochedos: elementos que, em sua repetição, deixam de ser meros cenários e tornam-se zonas espectrais.
É justamente essa dimensão que Michael Richardson (2004) denomina “testemunho do não-humano”. Assim como o trauma ultrapassa os limites da memória consciente e se inscreve como lacuna, também a paisagem pode carregar as cicatrizes de um passado extremo. Essa persistência dá lugar ao que Derrida (1994) concebe como disjunção espectral: um visível que não se vê, uma presença ausente, um vestígio que retorna para assombrar. Nos desfiladeiros dos westerns, o olhar do espectador é tomado por esse assombro, o peso da história está impregnado nos rochedos: os tiros cenográficos evocam tiros reais; os corpos dos atores remetem às vidas exterminadas. A imagem permanece atravessada por um passado não reconciliado.
Ao propor uma aproximação entre Sangue de Heróis e Landscape Suicide, este trabalho delineia uma hipótese de leitura que enxerga a paisagem cinematográfica como espaço espectral de inscrição do trauma. Através da câmera, esses filmes buscam conjurar os fantasmas do passado e convocá-los para um testemunho que jamais se completa, mas que persiste ecoando.
Bibliografia
- BRENEZ, Nicole. On the Figure in General and the Body in Particular: Figurative Invention in Cinema. London: Anthem Press, 2023.
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Fra Angelico, Dissemblance et figuration. Paris: Flammarion, 1995.
LANDSCAPE SUICIDE. Direção: James Benning. Roteiro: James Benning. Produção: James Benning. Estados Unidos. 1985. 95 min, película, colorido.
RICHARDSON, Michael. Nonhuman Witnessing: War, Data, and Ecology after the End of the World. Duke UP, 2024.
SANGUE DE HERÓIS. Direção: John Ford. Roteiro: Frank S. Nugent. Produção: Merian C. Cooper, John Ford. Estados Unidos: RKO Radio Pictures. 1948. 125 min, película, preto e branco.