Ficha do Proponente
Proponente
- nicolas Andrés luna (UNICAMP)
Minicurrículo
- Pós-graduando em Multimeios na UNICAMP, pesquisa mise-en-scène do HIV no cinema latino-americano. Formado em Cinema pela UNILA e alumni diplomatura de preservacion audiovisual DIPRA (Argentina). Produtor da Mostra Arder na Fronteira e participante da Locarno Industry Academy (2024). Fundador do coletivo Território Cine (Buenos Aires). Montador premiado e diretor do curta Transa e Fronteira, exibido em festivais queer no Brasil e Argentina. Atua na produção de projetos queer-comunitários.
Ficha do Trabalho
Título
- A profanação da imagem: o uso do arquivo para um devir queer
Eixo Temático
- ET 3 – FABULAÇÕES, REALISMOS E EXPERIMENTAÇÕES ESTÉTICAS E NARRATIVAS NO CINEMA MUNDIAL
Resumo
- Se propoe analisar o gesto de profanação das imagens de arquivo como estratégia para a construção de devires queer no cinema contemporâneo latino-americano. A partir das obras Diários de confissões íntimas e oficiais (2021), de Marilina Giménez, e A noite do minotauro (2023), de Juliana Zuluaga Montoya, observa-se como ambas as cineastas subtraem imagens de arquivo de suas especulando e renarrando-se , as diretoras deslocam os sentidos das imagens, rompem com lógicas canonicas da montagem
Resumo expandido
- Profanar, nos termos propostos por Giorgio Agamben, implica transgredir e restituir ao uso comum aquilo que foi separado e declarado indisponível ao ser humano: o sagrado (Agamben, 2005, p. 83). A profanação, nesse sentido, não consiste apenas em quebrar uma restrição simbólica, mas em devolver ao domínio do uso comum aquilo que dele foi excluído, habilitando-o para um uso potencialmente infinito e, assim, expandindo seu campo de significação e possibilidades.
Aplicada ao campo das imagens, a profanação implica retirá-las de sua função limitada ou institucionalmente determinada. Uma imagem de arquivo, por exemplo, se espera que cumpra uma função documental: informar, comprovar ou registrar alguém ou algum acontecimento. Nesse contexto, recorre-se à sua literalidade, limitando ela, restringindo sua potência expressiva e simbólica. De modo semelhante, imagens oriundas da televisão, do cinema ou da publicidade estão submetidas a uma lógica de consumo, na qual seus sentidos são delimitados por objetivos comerciais ou narrativos preestabelecidos, esvaziando a possibilidade de deslocamentos semânticos. Cabe então procurar formas e referências que proponham uma fissura da funcionalidade do arquivo.
No curta-metragem Diários de confissões íntimas e oficiais (2021), Marilina Giménez constrói uma releitura pessoal e política a partir de imagens extraídas de programas televisivos, peças publicitárias e arquivos pessoais das décadas de 1990 e 2000. Nesse trabalho, a diretora narra sua primeira relação lésbica em paralelo ao contexto sociopolítico da Argentina naquele período.
Marilina ocupa simultaneamente os papéis de narradora e protagonista: sua voz conduz o percurso narrativo, organiza a montagem e propõe desvios poéticos e afetivos sobre essas imagens. Em determinado momento, ao final da obra, após (re)contar sua história de amor, afirma: “Se ressignifica, se re-significa e ressignifica”, enquanto as imagens de arquivo retornam de maneira vertiginosa, reiterando a potência do arquivo.
Giménez reinventa sua trajetória a partir de uma relação direta com esse arquivo audiovisual, que não apenas documenta um país e seus discursos, mas também evoca desejos íntimos, medos e experiências de uma subjetividade queer que se apropria dessas imagens para projetar futuros possíveis.
Em A noite do minotauro (2023), Juliana Zuluaga Montoya propõe-se, por meio do uso de material de arquivo, a especular sobre a história de sua avó, Luz Emilia García, precursora do cinema pornográfico colombiano. A obra de Juliana pode ser compreendida como um exercício de reinvenção da memória tanto no âmbito familiar quanto no nacional, uma vez que a morte de Luz Emilia convoca o espectador a refletir sobre o cinema pornográfico na Colômbia. As imagens de arquivo são manipuladas em sua cor, duração e narrativa. Juliana subtrai essas imagens de sua função conservadora como arquivo familiar para profaná-las e expandir suas possibilidades de leitura, a partir de uma perspectiva especulativa e de fuga. Trata-se de trabalhar a memória por meio de derivações possíveis entre imaginação e fantasia. A cineasta tensiona os limites do arquivo, subverte sua lógica, rompe-o para fabular com ele.
Ambas as diretoras profanam o arquivo por meio de procedimentos estilísticos distintos; contudo, compartilham uma preocupação comum: o exercício de revelar o que foi silenciado ou imaginar aquilo que talvez jamais tenha existido, mas que carrega uma potência de existência. As cineastas revisitam as imagens do passado para inscrevê-las no presente e, assim, propor devires, iluminando aquilo que permaneceu à sombra, inventando aquilo que não existiu e foi reprimido ou disciplinado. Profanar o arquivo configura-se como um gesto de dizer o que não foi dito e imaginar aquilo que poderá vir a ser (Muñoz, 2020, p. 106). Profanar é, portanto, insistir.É retornar continuamente às imagens e às suas fissuras. É permitir que o impossível seja dito, que o impensável emerja para ser (re) narrado.
Bibliografia
- AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2005.
DENEGRI, Andrés. Esos otros mundos: ensayos sobre arte, cine y política. Buenos Aires: EDUNTREF, 2014.
DERRIDA, Jacques. Mal de archivo: una impresión freudiana. Tradução de Cristina de Peretti. Madrid: Trotta, 1997.
FAROCKI, Harun. Desconfiar das imagens. Tradução de André Telles. São Paulo: Cobogó, 2016.
FOUCAULT, Michel. La arqueología del saber. 9. ed. México: Siglo XXI Editores, 2004.
GALUPPO, Gustavo. El cine como promesa. Pamplona: Sans Soleil Ediciones, 2018.
LA FERLA, Jorge. Narrativas críticas: ensayos sobre representación audiovisual. Buenos Aires: Ediciones del Rojas, 2003.
MUÑOZ, José Esteban. Cruising utopia: o então e o vir-a-ser do queer futurista. Tradução de André Fischer. São Paulo: n-1 Edições, 2020.