Ficha do Proponente
Proponente
- Nicholas Andueza (PUC-Rio)
Minicurrículo
- Professor de cinema e audiovisual da PUC-Rio, coordenador da Central Técnica da Cinemateca do MAM Rio, editor-assistente da Revista Eco-Pós da UFRJ, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e doutor em História pela Paris 1 – Panthéon Sorbonne. Crítico de arte na Revista DASartes. Montador audiovisual e câmera.
Ficha do Trabalho
Título
- Cinema navegante: o mar e a memória em “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”
Resumo
- Analiso as cenas de mar filmadas por Carol Benjamin para “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” (2020), e suas relações com os arquivos. A estrutura epistolar do filme, sua descrição do exílio em contexto ditatorial e também suas investigações em torno das subjetividades dos envolvidos, fazem com que as cenas marítimas funcionem como avatares das profundezas da experiência humana. Por sua imensidão, o mar vem como materialização de um certo mistério, como imagem viva da utopia da memória.
Resumo expandido
- Em “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” (2020), para além de um valioso material de arquivo, Carol Benjamin nos propõe algumas cenas de mar, filmadas por ela mesma ou por sua equipe. A câmera à deriva, solta no oceano, às vezes submersa, às vezes não. As imagens em preto e branco, céu e mar como massas cinzentas de texturas diversas, firmamentos de prata. Eventualmente um morro no horizonte, que anuncia litoral. Por meio da câmera lenta, a imagem aumenta a viscosidade da água, o balanço da maré, a densidade do movimento e, por conseguinte, do próprio tempo. Destaco esses momentos marítimos do filme por conta da síntese estética que conseguem realizar em meio à sua aparente simplicidade.
“Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”, como indica o título, é, por base, um filme epistolar. Carol procura a história de seu pai e encontra a de sua avó, seguindo uma série de cartas trocadas. Iramaya Benjamin marca a memória nacional devido ao destemor com que lutou pela libertação de seu filho em plena ditadura. César, pai de Carol, foi preso ilegalmente em 1971 aos 17 anos de idade, passando três anos e meio sendo torturado em uma solitária. Quando finalmente é solto, vai imediatamente para o exílio, na Noruega, juntando-se ao irmão, Cid, que também havia sido exilado. Na Noruega também está Marianne Eyre, que recebe Carol logo ao início do filme para lhe mostrar as cartas que recebia de Iramaya, por participar da ação humanitária da Anistia Internacional. Assim, as águas cíclicas e rítmicas daquelas cenas de mar guardam um profundo emaranhado de atravessamentos: as viagens das missivas, das pessoas, do próprio filme, mas também do tempo e da memória.
Soma-se a essa macro-história do Brasil, da ditadura, das cartas e dos exilados, a relação pessoal de Carol com as águas, contada no filme: César e ela tinham o costume de nadar juntos, pai e filha. As ondas em câmera lenta daqueles planos guardam também segredos sobre a ligação entre os dois. Ao fim do longa, quando Carol leva seu filho pequeno para nadar consigo, enquanto sua voz em off reflete sobre a situação do país, essas ondas se multiplicam como camadas sedimentares. Ao filmar o oceano, Carol sugere um manto móvel de relações – cultivadas no tempo, mas também com o próprio tempo.
Nas cenas marítimas do filme, essas polissemias relacionais ganham uma visão ainda mais destilada nos momentos em que a câmera desfoca. É quando vemos não mais o mar em si, mas o brilho circular das gotas – a cruza refratária entre a água e a luz do mundo. É então que é possível escutar o canto de Arthur Rimbaud descrevendo a eternidade: “é o mar misturado ao sol” (2017). Os halos de luz que preenchem a tela nesses instantes, vagalumes oceânicos, figuram como miragens da experiência humana, dão corpo a uma certa “topia” da memória, que é disforme como as ondas marítimas, e portanto “u-tópica” em certo sentido. A materialidade instável e obscura do mar, quando tornada imagem, parece replicar a imaterialidade do lugar da memória. Assim, o filme remete ao histórico trabalhado por Lúcia Nagib (2006) relativo ao mar como utopia no cinema brasileiro. Em certos filmes, olhar o mar é como beijar o tempo.
E talvez haja, no coração de Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, uma imagem-evento que transponha à retomada do arquivo esse encontro com o mar da memória e da temporalidade. É um dos arquivo audiovisuais mais expressivos recuperados por Carol Benjamin na montagem do longa: o momento no qual seu tio, Cid Benjamin, finalmente reencontra o irmão, César, que, recém-liberto, desce do avião em solo norueguês. Ao contrário da manipulação ampla das imagens, Carol mantém essa sequência intocada em meio à montagem do filme. O simples ato de rever, em outro contexto, já é atravessar o mar do tempo, já pode ser o suficiente para o encontro com uma certa “arché” da história, com um certo “topos” oceânico da memória.
Bibliografia
- AGAMBEN, G.. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
FRANÇA, A.; MACHADO, P.; CUNEGUNDES, P. Te devo uma carta sobre o Brasil e este sonho: entrevista com Carol Benjamin. Imagofagia, Buenos Aires, n. 25, p. 185-203, 2022.
KRACAUER, S.. Theory of film: the redemption of physical reality. Londres; Nova York: Oxford University Press, 1997.
MACHADO, P., Do arquivo à montagem: uma análise da produção e usos de imagens públicas e domésticas dos anos da ditadura militar no Brasil, Revista de estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 36, v.79, maio-agosto de 2023.
MBEMBE, A.. Brutalismo. São Paulo: n-1 edições, 2021.
NAGIB, L.. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
RICŒUR, P.. L’histoire, la mémoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.
RIMBAUD, J.. Iluminações, Uma cerveja no inferno. Porto: Assírio & Alvim, 2017.