Ficha do Proponente
Proponente
- Marcelo Miranda da Silva (UAM)
Minicurrículo
- Marcelo Miranda tem graduação em Comunicação Social/Jornalismo (UFJF, 2004) e é mestre em Comunicação Social (UFMG, 2017). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Jornalista, crítico e curador de cinema. Colaborador do jornal “Folha de S.Paulo” e das revistas “Carta Capital” e “Quatro Cinco Um”, entre outras publicações. Coeditor da revista eletrônica “Abismu”. Presidente da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) entre 2021 e 202
Ficha do Trabalho
Título
- Assombros coloniais: o gótico e a estética negativa em “A herança” (2024), de João Cândido Zacharias
Seminário
- Estudos do Insólito e do Horror no Audiovisual
Resumo
- O filme “A herança” (2024), de João Cândido Zacharias, atualiza as “poéticas do mal” do gótico literário, transpondo-as para um casarão colonial brasileiro como crítica às estruturas de poder nacionais e à opressão do indivíduo em suas singularidades. Através de elementos como o espaço arquitetônico opressivo, o passado fantasmagórico e a monstruosidade social e metafórica, o filme revela como o gênero do horror pode desvelar constrangimentos íntimos a partir do gótico expressivo.
Resumo expandido
- O filme “A herança” (2024), de João Cândido Zacharias, constitui um objeto de estudo particularmente rico para se pensar as relações entre o gótico literário e sua transposição para o cinema brasileiro contemporâneo, especialmente na capacidade do gênero como dispositivo crítico das estruturas sociais e históricas. Ambientado num casarão colonial decadente, o longa-metragem opera sofisticada releitura das convenções góticas, transformando-as em análise das contradições da formação nacional brasileira. Essa transposição se dá precisamente através do que Fred Botting (2024) identifica como característica fundamental do gótico expressivo: o sistemático embaçamento de fronteiras entre passado e presente, entre razão e superstição, entre o indivíduo e as estruturas sociais que o determinam. Essa operação gera o “temor sublime” (BOTTING, 2024) como efeito estético e emocional. Em “A herança”, o diretor combina elementos sobrenaturais tradicionais do gótico, como aparições fantasmagóricas, atmosferas de mistério e eventos inexplicáveis, com a crueza histórica social brasileira, criando uma atmosfera na qual os chamados “incidentes fantasmagóricos” (BOTTING, 2024) deixam de ser apenas recursos de suspense para virem como sintomas de violências históricas não resolvidas. O casarão colonial de família, espaço central de “A herança”, é entidade física e psíquica, é arquitetura concreta e projeção das angústias. Isso exemplifica a ideia de Botting de que o gótico, ao se tornar expressão estética, “questiona mais do que resgata qualquer continuidade imaginada entre passado e presente” (BOTTING, 2024). Essa dupla natureza do espaço fílmico, ao mesmo tempo cenário concreto e metáfora das estruturas sociais, revela-se fundamental para compreender como o filme elabora sua crítica à violência colonial. A narrativa dissolve as fronteiras convencionais entre racional e passional, entre natureza e cultura, e expõe contradições de uma elite brasileira atormentada pelos fantasmas de seu próprio passado. Como observam Julio França e Daniel Augusto Silva (2022a) em seus estudos sobre o gótico brasileiro, tal relação não é fortuita, mas sim característica de uma tradição literária e cinematográfica nacional que utiliza os recursos do gênero para tratar desses constrangimentos históricos e desnaturalizar estruturas de poder. Esta apresentação pretende tratar de como “A herança” mobiliza o potencial do gótico, conforme teorizado por Botting, para desestabilizar não apenas as convenções narrativas tradicionais, mas sobretudo as noções de continuidade histórica e harmonia social tão caras ao imaginário nacional brasileiro. O estudo se concentra em três eixos principais de análise que fazem parte de uma pesquisa mais ampla: o espaço arquitetônico do casarão como representação das inquietações especialmente do protagonista, com o sobrenatural emergindo como sintoma de violências históricas reprimidas; o desenvolvimento da narrativa através da sistemática desestabilização das dicotomias razão/paixão e indivíduo/sociedade, operação característica do gótico segundo Botting; e a atualização do conceito de “monstruosidade” (COHEN, 1996) para tratar não apenas de personagens individuais, mas toda uma estrutura familiar e social. A metodologia combina análise fílmica, com especial atenção à construção de espaço, tempo e personagens, e referencial teórico do gótico literário e cinematográfico. A abordagem permite demonstrar de que forma “A herança” se insere numa tradição do gótico brasileiro dentro de um contexto contemporâneo de 2024 ao expor as descontinuidades e violências da formação nacional e individual e revelando um “assombro sublime” (BOTTING, 2024) que nunca deixou de aparecer nas criações artísticas do país.
Bibliografia
- BOTTING, Fred. Gótico. São Paulo: Clepsidra, 2024.
CÁNEPA, Laura Loguércio. Medo de quê?: Uma história do horror nos filmes brasileiros. Campinas, SP: [s.n.], 2008. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, São Paulo, 2008.
CÁNEPA, Laura Loguércio. “O Anjo da Noite, horror gótico e tensões sociais brasileiras na década de 1970”. Revista Latinoamericana de Comunicación, núm. 134. Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina 2017
CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou Paradoxos do coração. Campinas, SP: Papirus, 1999.
FRANÇA, Julio; COLUCCI, Luciana (org.). Matizes do gótico: Três séculos de Horace Walpole. São Paulo: Clepsidra; Rio de Janeiro: Dialogarts, 2020.
FRANÇA, Julio; SILVA, Daniel Augusto P. (org.). Poéticas do mal: A literatura de medo no Brasil (1830-1920). Rio de Janeiro: Acaso Cultural, 2022a.
FRANÇA, Julio; NESTAREZ, Oscar (org.). Tênebra: Narrativas brasileiras de horror (1839-1899). São Paulo: